Por: Rev. Dharmamanayu
Estes dias estava lendo um artigo muito interessante chamado “Universalismo versus relativismo no julgamento moral”, da autora Angela M. B. Biaggio. O trabalho discorre sobre a visão moral universalista, defendida por psicólogos como Piaget e Kohlberg, por exemplo, que se apropriaram da filosofia universalista, em contraponto com a visão moral relativista de outros estudiosos da mesma área.
Piaget
Do lado de Piaget, os especialistas, fundamentados principalmente no pensamento de Immanuel Kant, como Turiel, defendem que não há variâncias significativas no desenvolvimento cognitivo e moral entre os seres humanos, desde o nascimento até a maior idade, sendo que estes passam, independentemente da cultura, pelos mesmos estágios evolutivos. Através de pesquisas com crianças de diversas faixas etárias, as conclusões obtidas por estes estudiosos podem ser sintetizadas da seguinte maneira: atos que ferem o domínio moral são julgados como transgressões mais graves do que os do domínio da cultura a qual estes indivíduos estão submetidos. Por exemplo, derrubar uma criança do balanço é considerado mais grave do que comer com as mãos, mesmo por crianças de maternal. Atos morais são julgados como errados em qualquer sociedade; atos convencionais, somente onde há uma regra contra eles.
Kant
Já os relativistas como Richard Shweder, apoiaram-se em modelos de pesquisas similares às propostas pelos universalistas, porém em países de culturas orientais, e obtiveram resultados distintos, que contradiziam os estudos dos universalistas. As crianças da Índia, por exemplo, pareciam propor que muitas das transgressões de convenção social eram julgadas mais graves do que as morais; ainda sugeriam que as regras sociais não eram alteráveis e deveriam ser obedecidas universalmente; enfim, pareciam estar mais apegadas aos valores culturais do que aos morais.
Não há ainda nada de conclusivo a respeito do assunto. Atualmente há quem critique a metodologia aplicada, acusando-a de não ter poder conclusivo tanto para justificar ou derrubar pontos de vistas de ambos os lados. Assim o impasse continua, sendo que a moralidade é vista como relativa a uns e universal a outros.
Polêmicas à parte, existem também os cientistas unificadores como James Rest que defendem a necessidade de um aprofundamento nas metodologias, a fim de se demonstrar a veracidade das sequências evolutivas defendidas pelo grupo de Piaget e Turiel e desmistificar as conclusões de Shweder na defesa do relativismo extremo. Os unificadores tentam articular estes pontos de vistas de uma maneira mais ou menos assim: desenvolvendo a ideia de uma "moralidade comum", construída, por ideais morais compartilhados de uma comunidade, testados pela coerência lógica (equilíbrio reflexivo). Rest não aceita a posição universalista pura, defendendo um tipo de moralidade "em fluxo", que pode se modificar, de acordo com a época e a cultura, tão logo uma articulação mais coerente e refinada se apresente, assim como ocorre nas demais ciências que estão sempre em "fluxo". Ou seja, verdades aceitáveis em uma determinada época são substituídas na medida em que “verdades maiores”, mais prováveis e mais gerais que as antigas, são desenvolvidas. Eckensberger, também unificador, defende que Piaget nunca desconsiderou a influência da cultura na formação moral, apesar de salientar o universalismo.
Apesar da questão não estar 100% resolvida, os universalistas, de Kant a Piaget e Kohlberg são bastante convincentes e são apoiados por diversos pesquisadores, mesmo pelos unificadores como Rest e Eckensberger, que apesar de não serem universalistas puros, acabam se inclinando mais ao universalismo do que ao relativismo. A sugestão unificadora parece ser a mais equilibrada, pois apesar de manter-se universalista e negar o relativismo extremo do “tudo é lícito”, não descarta a possibilidade de evolução do pensamento.
Enfim, parece ser coerente dizer que os valores morais, ou éticos, se encontram em um nível superior aos "valores" locais e culturais. Sem valores universais a vida em sociedade seria cruel e não direcionada. Posso dar um exemplo de "valor universal": a compaixão. A vida sem colocar-se no lugar do outro é inviável em qualquer sociedade, pois não nos seria garantido nenhum direito; além de que, da compaixão outros valores podem ser derivados, como o amor aos seres, honestidade, lealdade, etc. É mais ou menos assim que um verdadeiro valor é percebido, pois, de certa maneira já se encontra em nós, e este se dá através do desenvolvimento dos estágios cognitivos, como propôs Piaget. É convincente dizer que é desta forma que a moral se coloca, acima de culturas ou “valores locais”.
Termino, citando literalmente um trecho da conclusão do artigo estudado, que corrobora com minha opinião sobre o tema:
“Parece não haver dúvida de que não se encontram inversões na sequência de estágios [de desenvolvimento cognitivo, proposto por Piaget], porém a cultura parece influenciar a incidência de pensamento de determinado estágio em seus membros. Da mesma forma, em algumas culturas pode haver maior heterogeneidade de pensamento a nível intra-individual, e em outras, menos. Isto significa que em algumas culturas as pessoas podem apresentar simultaneamente respostas em dois ou três estágios, enquanto que em outras podem ser mais homogêneas, apresentando cada indivíduo uma predominância nítida de um estágio, com apenas algumas poucas respostas nos estágios adjacentes. Em outras culturas, ainda, podem não aparecer os estágios mais altos. Em suma, parece haver suficiente evidência de que a sequência de estágios é universal e de que há um cerne de valores universais, tais como o não prejudicar outrem, a lealdade, o cumprimento de promessas, o respeito à vida humana. A cultura atuaria como um fator modulador, acentuando alguns valores e tipos de raciocínio moral aqui, diminuindo a intensidade de outros ali, porém sem anular uma essência humana comum.”
Referências
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