A Influência do meio na formação da Subjetividade
(contém SPOILERS)
(contém SPOILERS)
O filme narra a história verídica de Kaspar Hauser (1812 – 1833); um adolescente misteriosamente abandonado na praça Unschlittplatz em Nuremberg, Alemanha, que passou a infância privado de interações sociais, vivendo solitariamente em uma masmorra. Kaspar só tinha contato humano nos horários de refeição ou quando seu suposto pai o ensinava o básico, como escrever o nome e falar poucas palavras.
Quando Kaspar foi acolhido pela sociedade, mal conseguia se comunicar, sentar, ficar de pé, se portar à mesa ou em outras situações sociais cotidianas.
Conforme a psicologia Histórico-Cultural, defendida por Lev Vygotsky (nascido em 17 de novembro de 1896, Orsha, Bielorrússia e falecido em 11 de junho de 1934, Moscou, Rússia), as interações sociais e com o meio são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo na infância, o desenvolvimento humano se dá nas trocas entre parceiros sociais, através de processos de interação e mediação. Parece que o caso exposto pelo filme corrobora com esta visão, pois mesmo biologicamente na fase adolescente, Hauser, devido à escassa vida social em sua infância, comportava-se praticamente como um bebê. Aos poucos, Kaspar começa a conhecer ambientes e pessoas, aprendendo a língua local e os costumes da sociedade em que estava inserido. Com isso, estímulos exteriores começaram a se fazer mais presentes na vida do personagem. Um exemplo de interação que normalmente seria típica da fase infantil, se dá na cena do contato com a chama da vela, quando o protagonista tenta pegar a chama e se queima pela primeira vez. Segundo Vygotsky este é um caso de interação direta que posteriormente se constituiria como um dispositivo mediador através da lembrança da dor, a fim de se evitar que a criança cometa o mesmo erro.
Não muito tempo depois do domínio da língua, Kaspar começa a desenvolver o pensamento lógico. Segundo Vygotsky, o pensamento desenvolve-se exponencialmente após a fala, pois assim, o fenômeno da fala interior e da fala egocêntrica se inicia (a criança começa a falar para si mesmo, “pensando alto”, com o objetivo de resolver problemas e entender situações). Para Vygotsky, a aquisição da linguagem passa por três fases: a linguagem social, que seria a fase que tem por função denominar e comunicar. Depois teríamos a linguagem egocêntrica e a linguagem interior, intimamente ligada ao pensamento. Obviamente os primeiros pensamentos lógicos de Hauser são rudimentares, por exemplo, ele, a princípio, acreditava ingenuamente que para se construir uma torre era necessário um homem gigante, contudo, com o decorrer dos dias, enriqueceu sua lógica a ponto de surpreender o professor de matemática com sua resposta sobre a aldeia dos mentirosos.
Com a língua, outros mediadores são desenvolvidos através dos signos. Sua cama torna-se símbolo de paz, quando este a considera o melhor lugar para se ficar, já que Kaspar se percebia como um estranho quando em meio aos demais, sentindo-se mais seguro ao refugiar-se em seu quarto. Kaspar ainda comparava homens aos lobos, animais que simbolizam a exploração e a maldade, pois percebia o desdém e a curiosidade mórbida dos demais em relação a ele. Por outro lado, descrevia a música em termos emocionais, numa clara manifestação de um signo mediador de sentimentos.
Com respeito a religião, mesmo com a insistência dos reverendos da cidade, Hauser não conseguia conceber um ser além dos sentidos, uma vez que ainda estava no estágio do pensamento concreto, voltado à resolução de problemas objetivos do dia a dia, sendo ainda incapaz de abstrair ao ponto de elaborar alguma metafísica. A sugestão de crer, mesmo sem que a divindade não se encaixasse em sua lógica não foi aceita pelo rapaz. Os religiosos ainda queriam saber se na época de masmorra o protagonista tinha alguma ideia de Deus, tentando desta maneira encontrar algum sentimento inato de divindade; porém, Kaspar responde que tal sentimento não existia, frustrando os fiéis.
É possível também “enquadrar” o personagem em dois estágios distintos segundo os níveis genéticos propostos por Vygotsky. No período de isolamento social, pode-se inferir que Hauser estava preso mais aos seus estados biológicos de Filogênese e Ortogênese, estando este limitado apenas ao desenvolvimento natural da espécie. Após o contato com a sociedade e à exposição a mais frequentes estímulos exteriores, o protagonista adentra aos demais níveis genéticos, a saber a Sociogênese, que o influenciaria culturalmente, enquadrando-o em segmentos sociais e a Microgênese, responsável pela formação de sua individualidade, já que a experiência de vida difere de pessoa para pessoa, ou seja, por mais que histórias de vida sejam semelhantes, jamais são perfeitamente iguais.
Outra coisa interessante de se notar no filme é que Kaspar parece aprender muito mais com as crianças do que com os adultos; talvez por questão de afinidade, uma vez que as crianças viveram mais recentemente as experiências de aprendizado e desenvolvimento do que os adultos, e assim, conseguiam compreender melhor as dificuldades de Hauser.
Infelizmente, Kaspar Hauser foi assassinado sem uma razão aparente e seu corpo, principalmente por causa do cérebro, foi enviado para estudos, a fim de se verificar diferenças em relação aos “normais”, numa clara demonstração da visão inatista predominante na época, que considerou o desenvolvimento cognitivo enigmático de Hauser associado puramente à raízes biológicas, sem levar em consideração a pouca interação com o ambiente, a qual Hauser foi submetido em sua infância e adolescência.
Finalmente, cabe aqui uma comparação, com respeito ao caso Hauser, entre as perspectivas de Vygotsky e de Jean Piaget (nascido em 9 de agosto de 1896, Neuchâtel, Suíça e falecido em 16 de setembro de 1980, Genebra, Suíça), um psicólogo contemporâneo de Vygotsky. Apesar de ambos considerarem a influência do ambiente no desenvolvimento do intelecto, há uma diferença essencial entre os estudiosos: para Piaget é o desenvolvimento natural (maturação) quem potencializa o aprendizado, já para Vygotsky é o aprendizado quem “puxa” o desenvolvimento. O Enigma de Kaspar Hauser seria respondido por Piaget da seguinte maneira: a vida de profundo isolamento do protagonista fez com que os estágios de desenvolvimento não fossem explorados em sua plenitude, assim, mesmo que o cérebro potencialmente pudesse aprender, nenhum estímulo foi produzido para o aprendizado. Nesta visão, entre zero a 24 meses, a mente de Hauser estava predisposta a aprender as primeiras palavras, porém como não escutou muitos diálogos devido ao confinamento, teve seu aprendizado prejudicado e seu curso natural de desenvolvimento atrasado. Para Vygotsky, a explicação do Enigma consistiria em dizer que, sem os estímulos exteriores, simplesmente, não há aprendizado, ou seja, sem a interação social a mente se congela no tempo, o que explica o comportamento infantil de Kaspar, mesmo na fase adolescente.
Enfim, este é o drama de Kaspar Hauser. Não se sabe porque ele fora criado desta maneira cruel, nem porque ele fora deixado aos cuidados da sociedade depois de tanto tempo. Entretanto, através de sua história é possível compreender um pouco melhor como se dá o desenvolvimento cognitivo dos seres humanos e qual a relação entre o aprendizado e desenvolvimento. A experiência vivida pelo protagonista do filme corrobora com a perspectiva de Vygotsky, apesar de que também é possível explicá-la por outras perspectivas, como este trabalho buscou fazer por Piaget. Vygotsky relacionou aprendizado/desenvolvimento de uma forma diferente dos demais pensadores da psicologia, afirmando que o aprendizado vem primeiro e o desenvolvimento ocorre como consequência daquele; enfatizando, desta maneira, a influência do exterior (sociedade, língua, cultura) na formação da subjetividade.
Bibliografia:
BARONE, L. M. C.; MARTINS, L. C. B.; CASTANHO, M. I. S. (orgs). Psicopedagogia: teorias da aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. Cap. 5 – Psicologia sócio-histórica e a psicopedagogia (p. 161 – 202);
VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Cap. 6 – Interação entre aprendizado e desenvolvimento (p. 87 – 105);
PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. 24. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. Cap. 1 – O desenvolvimento mental da criança. (p. 13 – 65) e Cap. 2 – O pensamento da criança. (p. 69-76).
HERZOG, WERNER. Título: O Enigma de Kaspar Hauser. [Filme-vídeo]. Produção de Werner Herzog. Alemanha, 1974.