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sexta-feira, 22 de maio de 2015

Dez Dúvidas sobre a Terra Pura (do Grande Mestre T'ien-t'ai)

Este pequeno tratado, atribuído ao Grande Mestre T'ien-t'ai (ou Tiantai, ou em japonês, Tendai Daishi), composto num formato didático de perguntas e respostas, trata da doutrina da Terra Pura e seus significados. Eu já havia traduzido alguns trechos antes, mas agora está disponível completo em português.



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Dez Dúvidas sobre a Terra Pura [T1961_.47.0077b21]

Explicado pelo Grande Mestre Zhìzhě do monastério do Monte Tiāntái [no século VI EC]

Questão 1:

A Grande Compaixão é o chamado da vida de budas e bodhisattvas. Assim, aquele que tem desenvolvido a mente búdica, desejando salvar e atravessar outros seres sencientes até a outra margem deveria simplesmente fazer o voto de renascer no reino tríplice[1], dentre as cinco impurezas e os três caminhos malignos. Por que deveríamos abandonar os seres sencientes e adentrar a uma vida de tranquilidade? Isso não seria falta de compaixão, uma preocupação com desejos egoístas, contrários ao caminho da iluminação[2]?

Resposta:

Há dois tipos de bodhisattvas. O primeiro tipo são aqueles que têm seguido o caminho do bodhisattva por um longo tempo e atingiram a compreensão do não-surgimento dos fenômenos. Esta repreensão se aplica a eles.

O segundo tipo de bodhisattvas são aqueles que não atingiram a compreensão do não-nascimento[3], assim como seres comuns que recentemente desenvolveram a mente búdica[4]. Se eles aspiram atingir a perfeita compreensão e adentrar à má existência[5] do reino tríplice para salvar os seres sencientes, eles devem permanecer constantemente próximos dos budas. É como diz o Tratado da Perfeição da Sabedoria:
"É tolo para seres humanos que ainda estejam presos a todo tipo de aflições, mesmo que possuam uma grande mente compassiva, buscar um renascimento prematuro nos reinos maléficos para resgatar os seres sencientes. Por que é assim? É assim porque nesse mundo mau e contaminado, as aflições são poderosas e amplamente difundidas. Aqueles desprovidos do poder da compreensão do não-nascimento estão presos e sujeitos a circunstâncias externas. Eles então tornam-se escravos da forma e som, fama e fortuna, com o karma resultante do desejo, ódio e ilusão. Assim que isso ocorre, eles não podem salvar a si mesmos, quanto mais aos outros! Se, por exemplo, eles vierem a renascer no reino humano, num ambiente de descrentes e externalistas, será difícil de encontrar sábios genuínos. Portanto, não será fácil ouvir ao Dharma de Buda, nem de atingir os objetivos dos sábios. Dentre aqueles que plantaram sementes de generosidade, moralidade e bem aventurança em existências anteriores e estão agora usufruindo poder e fama, quantos se encontram enfeitiçados por uma vida de opulência e honras, chafurdando-se em desejo e cobiça sem fim? Portanto, mesmo quando eles são aconselhados pelos mestres iluminados, não confiam, nem agem de acordo com as orientações. Além disso, para satisfazer suas paixões, eles tomam vantagem de seu poder e influência, criando uma grande quantidade de mau karma. Assim, quando sua presente existência chega ao fim, eles caem nos três caminhos malignos por incontáveis kalpas. Depois disso, eles renascem como humanos de castas inferiores. Se eles não encontrarem bons conselheiros espirituais, eles continuarão iludidos, criando mais e mais mau karma e caindo novamente nos reinos inferiores. Desde os tempos antigos, seres sencientes presos no ciclo de nascimentos e mortes estão sob tais dificuldades. Este é chamado de o Difícil Caminho da Prática.'"

O Sutra de Vimalakīrti também afirma que,
"Se você não pode curar sua própria enfermidade, como pode querer curar a enfermidade alheia[6]?"

O Tratado da Perfeição da Sabedoria ainda diz:
"Vamos supor que duas pessoas, cada uma vê um parente se afogando no rio. A primeira pessoa, agindo por impulso, imediatamente pula dentro da água. Contudo, por falta da habilidade necessária, no fim, ambos se afogam. A segunda pessoa, mais inteligente e habilidosa, velozmente busca por um barco e singra ao resgate. Assim, ambos escapam do afogamento. Os recentemente tornados bodhisattvas são como o primeiro indivíduo em quem falta habilidade do poder da compreensão do não-nascimento e não podem salvar os seres sencientes. Apenas os bodhisattvas que permanecem próximos aos budas e atingem a compreensão do não-nascimento podem substituir os budas e atravessar os incontáveis seres sencientes até a outra margem, exatamente como a pessoa que tinha o barco."

O Tratado da Perfeição da Sabedoria ainda continua:
"Isso não é diferente do bebê que não deve deixar sua mãe, a fim de que não caia num poço, afogue-se no rio ou morra de fome, ou do pequenino pássaro cujas asas ainda não estão totalmente desenvolvidas. Ele deve esperar seu tempo, diligentemente pulando de galho em galho até poder voar mais longe, despreocupado e desimpedido. As pessoas comuns, desprovidas da compreensão do não-nascimento devem limitar-se a recitação do nome do Buda para atingir a mente centrada. Assim que a meta é atingida, na hora da morte, eles certamente renascerão na Terra Pura. Tendo visto o Buda Amitābha e atingido a compreensão do não-nascimento, eles podem conduzir o barco daquela compreensão rumo ao mar dos nascimentos e mortes para atravessar os outros seres sencientes e realizar a tarefa de incontáveis budas de acordo com seu desejo."

Por tais razões, praticantes compassivos que queiram ensinar e converter os seres sencientes que habitam os infernos, ou adentrar ao mar dos nascimentos e mortes, devem manter em mente as causas e condições para renascer na Terra Pura. Isso é chamado de caminho fácil de prática no Comentário Sobre os Dez Estágios do Bodhisattva.

Questão 2:

Todos os fenômenos são naturalmente insubstanciais, não surgidos, idênticos e imóveis. Não estamos indo contra essa verdade quando abandonamos este mundo, buscando o renascimento na Terra da Suprema Bem Aventurança? O Sutra de Vimalakīrti ensina que "para renascer na Terra Pura, você deve primeiro purificar sua própria mente; quando a mente se torna pura, as terras búdicas são igualmente puras." Os seguidores da Terra Pura não estão indo contra essa verdade?

Resposta:

Essa questão envolve dois princípios e pode ser respondida em dois níveis.

A) No nível geral, se você acha que buscar o renascimento na Terra Pura significa "abandonar este lugar e procurar aquele lugar" e por isso seria incompatível com a Verdade da Condicionalidade, você não estaria cometendo o mesmo engano de se agarrar ao Mundo Sahā e não buscar o renascimento na Terra Pura, ou seja, "abandonar este lugar e apegar-se àquele?" Se, por outro lado, você disser, "Eu não estou nem buscando renascer lá, nem desejo permanecer aqui," você acaba caindo no erro do niilismo.

O Sutra do Diamante afirma sobre essa conexão:

"Subhūti (...), não tenha tais pensamentos. Por quê? Porque aquele que desenvolve a mente da suprema iluminação não defende a total aniquilação das marcas dos fenômenos."

B) No nível específico, se você sustenta já a verdade do não-surgimento[7] e da Terra Pura, eu gostaria de te oferecer a seguinte explicação.

O não-surgimento é precisamente a verdade do não-nascimento e não-morte. Não-surgimento significa que todos os fenômenos são falsos agregados, nascidos de causas e condições desprovidos de natureza própria. Por isso se diz que eles não possuem natureza de nascimento real ou momento de surgimento. Analisando assim, eles, na realidade, não vêm de lugar nenhum. Portanto se afirma que 
eles são não-nascidos.

Não-morte significa que, sendo os fenômenos desprovidos de natureza própria, quando eles se extinguem, eles não são considerados mortos. Como não possuem um local físico para retornar, diz-se que são não-extintos.

Por essa razão, a verdade do não-surgimento, ou seja, do não-nascimento e não-morte, não pode existir em nenhum local externo aos fenômenos ordinários, que são sujeitos ao nascimento e morte. Portanto, o não-surgimento não significa não buscar o renascimento na Terra Pura.

O Tratado do Caminho do Meio afirma:
"Os fenômenos são nascidos de causas e condições. Assim, afirmo que são insubstanciais. Eles também são chamados de falsos e fictícios e isso é também a verdade do Caminho do Meio."

Ele também atesta:
"Os fenômenos nem surgem espontaneamente, nem surgem a partir de outra coisa. Eles nem surgem juntos, nem separados das causas e condições. Por isso se diz que eles são não-nascidos."

O Sutra de Vimalakīrti afirma:

"Embora ele saiba que as terras búdicas
São insubstanciais como os seres vivos
Ele segue praticando o ensino da Terra Pura
Para ensinar e encaminhar os homens."



E também atesta:
"Podemos construir mansões conforme desejamos num terreno vazio, mas é impossível construir em meio ao espaço vazio."

Quando os budas ensinam, eles normalmente baseiam-se nas Duas Verdades[8], a verdade última e a convencional. Eles não destroem identidades fictícias e provisórias dos fenômenos quando revelam suas verdadeiras características.

Essa é a razão pela qual o sábio, enquanto decididamente buscando renascer na Terra Pura, também compreende que a natureza do renascimento é intrinsecamente insubstancial. Este é o verdadeiro não-nascimento e também o significado de "quando a mente é pura, as terras búdicas são igualmente puras."

Os estúpidos e ignorantes, por outro lado, se enganam sobre o conceito de nascimento. Ao ouvirem o termo "nascimento", eles entendem como um nascimento físico e ouvindo "não-nascimento", eles se prendem a um sentido literal e acham que não há renascimento nenhum[9]. Sua compreensão é insuficiente para entender que nascimento é precisamente não-nascimento e o não-nascimento não é um obstáculo ao conceito de nascimento."

Por não entender esse princípio, eles causam discussões, caluniando e depreciando aqueles que buscar o renascimento na Terra Pura do Ocidente. Que grande engano! Eles são culpados de vilipendiar o Dharma e pertencem à classe dos externalistas iludidos.

Questão 3:

Todas as terras puras dos budas das dez direções possuem iguais qualidades e virtudes. Sua natureza dhármica também é a mesma. Portanto, o praticante tem a possibilidade de meditar nas várias virtudes dos budas e buscar renascer nas várias terras puras das dez direções. Por que ele deveria especificamente buscar renascer na Terra Pura de um buda em particular? Isso não é contrário à verdade de igualdade em buscar o renascimento?

Resposta:

Todas as terras puras dos budas são, na verdade, iguais. Apesar disso, a maioria dos seres sencientes em nosso mundo, geralmente possuem faculdades débeis e limitadas e mentes dispersas, sendo difícil para eles atingir o samādhi, ao menos que se concentrem exclusivamente em um único reino.

A prática de constantemente se concentrar no Buda Amitābha é o samādhi da marca única. Sendo a mente dedicada a uma única coisa, o praticante atinge o renascimento na Terra Pura. No Sutra do Renascimento de Acordo com os Votos, o Buda Śākyamuni foi questionado por um bodhisattva, "Honrado do Mundo, existem terras puras em todas as dez direções. Por que você enaltece a Terra Pura do Ocidente e impele aos seres sencientes que se concentrem continuamente no Buda Amitābha, buscando renascer em sua terra?"

O Buda respondeu, "Os seres sencientes deste mundo Sahā, geralmente possuem mentes impuras e dispersas. Portanto, eu enalteço apenas a terra pura do ocidente, concentrando suas mentes em um único reino. Se eles meditarem em todos os budas, a extensão de suas atenções será muito vasta, suas mentes se tornarão perdidas e confusas e eles terão dificuldade em atingir o samādhi. Assim, eles falharão em atingir o renascimento na Terra Pura.

"Além disso, buscando as virtudes de um único buda é o mesmo que buscar as virtudes de todos os budas, já que todos os budas possuem em comum a mesma natureza dhármica. É por isso que concentrar-se no Buda Amitābha é concentrar-se em todos os budas, renascer na Terra Pura do Ocidente é o mesmo que renascer em todas as terras puras."

Assim, o Sutra Avatamsaka afirma:

"Os corpos de todos os budas
são o corpo de qualquer buda.
Eles possuem a mesma mente e a mesma sabedoria.
Eles são iguais em poder e destemor."


Adiante, o Sutra Avatamsaka também diz:
"Isso é semelhante à lua, redonda e brilhante, sua imagem refletindo-se sobre rios e lagos. Embora seu reflexo seja visto em todo lugar, há apenas uma única lua. Assim também é com (...) os budas. Embora eles apareçam em todos os reinos, seus corpos são não-duais."

Resumindo, baseado em tais exemplos, o sábio compreenderá o que significa a verdade de que um é todos e todos são um[10]. Quando a verdade é captada, concentrar-se em um buda é precisamente concentrar-se em todos os budas.

Questão 4:

Há muitos budas e terras puras em todas as direções. Sendo que os seres sencientes neste mundo possuem mentes impuras e dispersas e diferentes disposições, o que causa a dificuldade de atingir o samādhi se eles se concentram em diversos budas, por que eles não deveriam recitar o nome de qualquer outro buda, conforme sua própria vontade e buscar o renascimento em qualquer terra pura de acordo com seus votos? Por que concentrar-se especificamente no Buda Amitābha e buscar o renascimento na Terra da Suprema Bem Aventurança?

Resposta:

As pessoas comuns, desprovidas de sabedoria, devem seguir a orientação do Buda ao invés de agir arbitrariamente de acordo com sua própria vontade. É por isso que, desde os tempos antigos, os praticantes da Terra Pura têm diligentemente recitado o nome do Buda Amitābha.

E o que significa seguir os ensinos do Buda? Durante toda sua carreira de ensinos, o Buda Śākyamuni constantemente intimou os seres sencientes a concentrar-se no Buda Amitābha e buscar o renascimento na Terra da Suprema Bem Aventurança. Isso é mencionado em sutras como o Sutra Longo de Amitābha, o Sutra da Meditação, o Sutra de Amitābha, o Sutra do Lótus e o Sutra Avatamsaka. Em numerosos sutras, o Buda constantemente nos incita a buscar o renascimento na Terra Pura do Ocidente. E isso não é apenas nos sutras. Em seus comentários, os bodhisattvas e patriarcas unanimamente nos orientam a buscar o renascimento na Terra da Suprema Bem Aventurança.

Além disso, o Buda Amitābha possui o poder de seus quarenta e oito votos compassivos de resgatar os seres sencientes. O Sutra da Meditação afirma:
"O Buda Amitābha possui 84 mil marcas da perfeição, cada marca possui 84 mil marcas menores de excelência e de cada marca menor saem 84 mil raios de luz iluminando todo o Reino do Dharma, alcançando, sem exceção, todos os seres sencientes que praticam a recitação da lembrança do Buda. Se quaisquer seres sencientes recitarem seu nome, haverá correspondência entre a causa e efeito e eles certamente renascerão lá."

Também, o Sutra de Amitābha, o Sutra Longo de Amitābha, dentre outros, ensinam que quando o Buda Śākyamuni proferiu tais sutras, os budas das dez direções, numerosos como as areias do rio Ganges, todos estenderam suas línguas, cobrindo o universo inteiro, testemunhando da verdade que qualquer ser senciente que recite o nome do Buda Amitābha tem seu renascimento assegurado na Terra da Suprema Bem Aventurança, graças ao grande e compassivo poder dos votos do Buda.

Nós já deveríamos saber que o Buda Amitābha possui grande afinidade de causas e condições com este mundo. Como diz o Sutra Longo de Amitābha:
"Na Era do Fim do Dharma, quando todos os outros sutras tiverem desaparecido, apenas este sutra restará por uma centena de anos para que se possa resgatar os seres sencientes e guiá-los até à Terra Pura do Ocidente."

Isso demonstra que o Buda Amitābha possui forte afinidade com os seres sencientes deste mundo corrompido.

Embora um ou dois sutras tenham, de uma forma geral, incitado ao renascimento em outras terras puras, isso não pode ser comparado ao fato de que numerosos sutras e comentários têm unanimemente apontado para a Terra da Suprema Bem Aventurança como foco do renascimento[11].

Questão 5:

As pessoas comuns estão inteiramente enredadas em pesados maus karmas e são plenas de todo tipo de aflições. Mesmo que tenham algumas virtudes como resultado do cultivo, eles podem encontrar dificuldade em romper mesmo uma mínima fração de suas máculas e empecilhos. A Terra da Suprema Bem Aventurança, por outro lado, é extremamente e puramente adornada, transcendendo o Mundo Tríplice. Como podem tais moralmente corruptos mortais esperar renascer lá?

Resposta:

Existem duas condições para o renascimento: os conceitos de próprio-poder e o outro-poder. Mesmo que o próprio-poder seja aparente, os seres comuns deste mundo, totalmente presos por seus apegos e aflições, mesmo tendo algum nível de cultivo, na realidade, ainda não podem renascer na Terra Pura nem merecer permanecer lá.

A Coletânea sobre a Paz e Bem Aventurança afirma:
"Aqueles que primeiro desenvolvem a mente búdica, começando do nível de seres comuns, completamente agrilhoados, ignorantes dos Três Tesouros e da lei de causa e efeito, devem se basear inicialmente na confiança. Em seguida, tendo eles embarcado no caminho da sabedoria búdica, os preceitos servem para eles como fundação. Se tais seres comuns aceitam os preceitos do bodhisattva e continuam a mantê-los, infalivelmente e sem interrupção por três kalpas, eles atingirão a Primeira Habitação do Estado de Bodhisattva. Se eles perseguirem seu cultivo dessa forma através das dez pāramitās, assim como com seus votos e práticas, um após outro, sem interrupção, no final de dez mil kalpas eles atingirão a sexta habitação do estado de bodhisattva. Continuando assim, eles atingirão o sétimo estado, da não-retrogressão. Terão então adentrado ao estágio da semente do estado de buda. Contudo, mesmo assim, ainda não poderão atingir o renascimento na Terra Pura."

Considerando o outro-poder, se alguém confia no poder do voto compassivo do Buda Amitābha de resgatar os seres sencientes e desenvolver a mente búdica, cultiva o samādhi da recitação da lembrança do Buda, se cansa de seu corpo finito e impuro do mundo tríplice, pratica a generosidade, mantém os preceitos e realiza outros atos meritórios, dedicando todos esses méritos e virtudes para o renascimento na Terra Pura do Ocidente, suas aspirações e a resposta do Buda serão equivalentes. Confiando assim no poder do Buda, ele imediatamente atinge o renascimento[12].

Assim, é afirmado no Comentário sobre os Dez Estágios do Estado de Bodhisattva:
"Há dois caminhos de cultivo, o caminho difícil e o caminho fácil. O caminho difícil se refere às práticas dos seres sencientes neste mundo das cinco turvações, que, através de incontáveis kalpas, aspiraram atingir o estágio da não-retrogressão. As dificuldades são verdadeiramente incontáveis, numerosas como partículas de poeira ou grãos de areia, numerosas demais para se imaginar. Eu vou resumir os cinco maiores abaixo: a) Externalistas são multidões, criando confusão sobre o doutrina do bodhisattva; b) Seres malignos destroem o bem do praticante, as boas virtudes; c) Virtudes mundanas e ganhos podem facilmente guiar o praticante para longe, assim ele cessa de se dedicar a práticas virtuosas; d) É mais fácil extraviar-se para o caminho do arhat por benefício próprio, o que obstrui a compreensão da mente da grande compaixão; e) Confiar exclusivamente no próprio-poder, sem o auxílio do poder do Buda, tornando o cultivo muito penoso e árduo. Não é diferente do caso da pessoa débil e deficiente, caminhando sozinha, que só pode avançar um pequeno trecho a cada dia, não importa quanto esforço faça. O caminho fácil do cultivo significa que, se os seres sencientes neste mundo acreditam nas palavras do Buda, praticam a recitação do nome do Buda e fazem o voto de renascer na Terra Pura, serão auxiliados pelo poder do voto do Buda e terão seu renascimento assegurado. Isso é análogo à pessoa que flutua rio abaixo num barco. Não importa se a distância é de muitos milhares de milhas, seu destino será alcançado em dado momento. É como uma pessoa comum, confiando no poder de um monarca universal, atravessa os quatro grandes universos em um dia e uma noite. Isso não se dá através de seu próprio poder, mas ao invés disso, é pelo poder do monarca."

Alguns, arrazoando sobre o princípio da coisa em si, podem dizer que os seres comuns, sendo condicionados, não podem renascer na Terra Pura ou ver o corpo do Buda.

A resposta para isso é que as virtudes da recitação da lembrança do Buda possuem raízes do bem que são incondicionadas. As pessoas comuns, impuras que desenvolvem a mente búdica, buscam o renascimento e praticam constantemente a recitação do nome do Buda, podem subjugar e destruir as aflições, atingem o renascimento e dependendo do nível de seu cultivo, obtém a visão dos aspectos superficiais do Buda, suas trinta e duas marcas de grandeza, por exemplo. Bodhisattvas, naturalmente, podem atingir o renascimento e ver os sutis e sublimes aspectos do Buda, como seu corpo de Dharma. Não pode haver dúvidas sobre isso.

Assim, o Sutra Avatamsaka afirma:
"Todos as variadas terras búdicas são igualmente e puramente adornadas. Por causa de suas ações, os seres sencientes diferem em sua percepção, pensando que tais terras são diferentes."

Esse é o sentido do que foi anteriormente.

Questão 6:

Embora os seres sencientes, completamente enredados em aflições e pontos de vista maléficos, possam atingir o renascimento na Terra Pura, eles estão fadados a desenvolver aflições e visões viciosas constantemente. Sob tais circunstâncias, podem se pode dizer que eles transcenderam o mundo tríplice e atingiram o estado da não-retrogressão?

Resposta:

Aqueles que renascem na Terra Pura, embora sejam seres comuns, totalmente enredados ao resultado de más ações, podem não desenvolver aflições ou visões perversas, nem falhar em atingir a não-retrogressão. Isso se deve a cinco fatores:

a) O poder do grande e compassivo voto do Buda de incluir e proteger a todos os seres;
b) A luz da sabedoria do Buda que brilha sobre eles, fazendo com que a mente búdica de tais pessoas superiores se encontre em constante progresso;
c) Na Terra Pura do Ocidente, os pássaros, a água, florestas, árvores, vento e músicas, todos soam o Dharma do sofrimento, insubstancialidade, impermanência e ausência de eu. Ao ouvir tais sons, os praticantes começam a concentrar-se no Buda, no Dharma e na Sangha;
d) Aqueles que renascem na Terra Pura, têm como companhia os bodhisattvas de mais alto nível e estão livres de todos os obstáculos, calamidades e condições malignas. Além disso, lá não há externalistas nem demônios, então suas mentes se encontram constantes e calmas;
e) Uma vez tendo renascido na Terra Pura, a duração de suas vidas é inexaurível, exatamente igual às dos budas e bodhisattvas. Assim, eles podem cultivar pacificamente por incontáveis kalpas.

Como resultado dessas cinco causas e condições, os seres sencientes que renascem na Terra Pura, certamente atingirão a não-retrogressão e nunca desenvolverão aflições ou pontos de vista perversos. Os seres sencientes neste mundo das cinco turvações, por outro lado, tem vidas curtas e encaram inúmeras condições vis e obstruções. Portanto, eles têm grande dificuldade em atingir a não-retrogressão. Essa verdade é evidente e além de qualquer dúvida.

Questão 7:

O Bodhisattva Maitreya é um bodhisattva de vida única que está agora no Paraíso Tuṣita. Eles sucederá o Buda Śākyamuni e se tornará um buda no futuro. Eu arrisco a afirmar que deveríamos cultivar aspectos superiores das dez virtudes e buscar renascer no Paraíso Tuṣita, para vê-lo em pessoa[13]. Quando o tempo chegar e ele descer à terra tornando-se um buda, nós o seguiremos e certamente atingiremos o estágio do sábio no curso de suas três assembleias de ensino. Portanto, qual a necessidade de buscar renascer na Terra Pura Ocidental?

Resposta:

Buscar o renascimento no Paraíso Tuṣita poderia, por alguns, ser considerado equivalente a ouvir o Dharma e ver o Buda. Parece muito similar a buscar o renascimento na Terra Pura do Ocidente. Contudo, após um exame minucioso, há muitas e grandes diferenças entre os dois. Vamos citar os dois pontos pelo bem da discussão.

a) Mesmo que possamos cultivar as dez virtudes, não é certo que possamos alcançar o renascimento no Paraíso Tuṣita. É como consta nos sutras:
"O praticante deve cultivar os diversos samādhis e adentrar profundamente à correta concentração de forma a obter o renascimento no átrio interior do Paraíso Tuṣita."

Disso podemos deduzir que o Bodhisattva Maitreya não possui o meio hábil de receber e acompanhar. Isso não se compara com o poder do voto original do Buda Amitābha e sua poderosa luz, que pode reunir e resgatar todos os seres sencientes que se concentrarem nele.

Além disso, quando o Buda Śākyamuni ensinou o significado do meio hábil de receber e acompanhar em sua explicação sobre os nove níveis de renascimento, ele diligentemente intimou os seres sencientes a buscarem o renascimento na Terra Pura do Ocidente. Tal recurso é muito simples. O praticante precisa apenas recitar o nome do Buda Amitābha e graças à coerência de sentimento e resposta, ele imediatamente atingirá o renascimento. Isso é análogo a uma campanha de alistamento. Aqueles que anseiam se juntar ao exército podem fazê-lo imediatamente, assim que seu desejo corresponda à meta da nação.

b) Em segundo lugar, o Paraíso Tuṣita está, além de tudo, ainda dentro do Reino do Desejo, ao qual pertence este mundo Sahā. Assim, aqueles que retrocedem ainda são muitos. Naquele paraíso, os pássaros, florestas, árvores e vento não emitem os sons do Dharma e assim não podem ajudar os seres sencientes a destruir as aflições, concentrar-se na Joia Tríplice, nem desenvolver a mente búdica. Além do mais, naquele reino, há deusas que excitam os cinco desejos nas mentes dos seres celestiais ao ponto de que poucos deles escapam das distrações das paixões.

Como pode isso se comparar com a Terra Pura do Ocidente[14], onde as árvores e os pássaros proclamam o Dharma maravilhoso e o vento canta a iluminação destruindo as aflições dos seres sencientes e reforçando a mente búdica dos praticantes? Além disso, na Terra Pura do Buda Amitābha, não há formas sedutoras[15] ou seres preocupados apenas com a própria iluminação. Há apenas as puras embarcações do caminho Mahāyāna. Por isso as aflições e o mau karma não podem surgir. Sob tais circunstâncias, como podem os praticantes falhar em atingir o estágio da não-retrogressão rapidamente? Nós apenas esboçamos alguns poucos pontos de comparação, já que as diferenças entre a Terra Pura e o Paraíso Tuṣita são claramente óbvias. Como pode haver quaisquer dúvidas adicionais ou hesitação?

Ainda assim, ver o Bodhisattva Maitreya e atingir os frutos do estado de arhat não são certezas. Durante a vida do Buda Śākyamuni, houve muitos que o viram, mas não atingiram o estado de sábio. No futuro, quando o Bodhisattva Maitreya aparecer no mundo, o mesmo será verdade. Incontáveis seres sencientes o verão e ouvirão o Dharma, mas não atingirão o estado de arhat. Esse não é o caso na Terra Pura do Buda Amitābha. Ao renascer lá está garantido o atingir da compreensão do não-nascimento, sendo impossível retroceder ao mundo tríplice ou prender-se ao karma dos nascimentos e mortes.

No escrito Relatos sobre o País do Ocidente (a Índia) há a história de três bodhisattvas, Asanga, Vasubandhu e Simhabhadra, que praticaram meditação, determinando buscar o renascimento no Paraíso Tuṣita. Eles todos fizeram o voto de que o primeiro deles que terminasse a existência, renascesse no átrio interno do Paraíso Tuṣita e visse o Bodhisattva Maitreya, voltaria e informaria aos outros. Simhabhadra morreu primeiro, mas já havia passado um longo tempo e ainda não havia retornado. Posteriormente, Vasubandhu estava próximo da morte, Asanga disse a ele, "Após prestar reverências a Maitreya, volte e me faça saber o mais rápido possível." Vasubandhu morreu, mas só voltou depois de três anos. Vasubandhu perguntou, "Após prestar reverências ao Bodhisattva Maitreya, ouvir seu sermão e exortações e respeitosamente circumambulá-lo por três vezes, eu voltei imediatamente. Eu não retornei antes, porque um dia e noite no Paraíso Tuṣita é equivalente a quatrocentos anos na terra."

Asanga então perguntou, "Onde está Simhabhadra agora?" E Vasubandhu respondeu, "Ele saiu a vaguear pelo pátio externo do Paraíso Tuṣita e agora está enredado pelos cinco prazeres. Da hora de sua morte até agora ele não conseguiu ver Maitreya."

Podemos deduzir dessa parábola que se mesmo bodhisattvas menores que renasçam no Paraíso Tuṣita estão sujeitos à ilusão, o que dizer das pessoas comuns? Por isso, os praticantes que desejarem assegurar-se da não-retrogressão devem buscar o renascimento na Terra Pura Ocidental ao invés do Paraíso Tuṣita.

Questão 8:

Desde o tempo imemorial, os seres sencientes têm cometido incontáveis transgressões. Além disso, nesta vida, desde a infância até a velhice, eles criam mau karma adicional, pois eles não têm a chance de encontrar bons conselheiros. Sob tais circunstâncias, como alguém pode dizer que na hora da morte eles vão alcançar o renascimento com apenas dez perfeitas repetições do nome do Buda? Assim, como você pode explicar de forma satisfatória o ensino de que tais praticantes transcendem as cadeias kármicas do mundo tríplice?

Resposta:

Na verdade, é difícil de aferir o número de boas e más sementes kármicas que os seres sencientes têm criado desde o tempo imemorial. Contudo, aqueles que, na hora da morte, encontram um bom conselheiro e atingem as dez repetições, certamente criaram bom karma no passado. De outra forma, eles não conseguiriam sequer encontrar um bom conselheiro, quanto mais fazer as dez puras recitações.

Agora, para evitar que você pense que pense que o mau karma do tempo sem início possuem um peso maior do que as dez repetições na hora da morte, eu vou citar três razões pelas quais o renascimento na Terra Pura não necessariamente depende do peso do mau karma, da quantidade de prática ou da duração do cultivo. As três razões dizem respeito a) à mente, b) às condições e c) à questão da certeza.

a) Mente

As transgressões cometidas pelos seres sencientes nascem do pensamento iludido e vicioso. A recitação do nome do Buda, por outro lado, surge do pensamento correto, que é, ouvir o nome do Buda Amitābha e suas virtudes verdadeiras. Um é falso e o outro é verdadeiro. Não é possível fazer comparações entre eles!

Isso é semelhante a uma casa que ficou trancada por dez mil anos. Se as janelas de repente se abrem, permitindo que a luz do sol entre, todas as trevas imediatamente se dissipam. Por mais longo que tenha sido o período de trevas, falharão elas em desaparecer? É assim também com os seres sencientes que têm cometido transgressões por muitos kalpas, mas atingem o renascimento na hora da morte através das dez recitações puras.

b) Condições

Transgressões crescem de pensamentos obscuros e invertidos, combinados com circunstâncias e ambientes ilusórios. A recitação do nome do Buda, ao contrário, se ergue da audição do nome e das puras virtudes do Buda Amitābha, combinada com a aspiração pela iluminação. Um é falso e o outro é verdadeiro. Não é possível fazer nenhuma comparação entre eles!

Isso é análogo a uma pessoa atingida por uma flecha envenenada. A flecha penetrou profundamente em seu corpo e o veneno é forte, ferindo gravemente sua carne e ossos. Ainda assim, se naquele momento ele ouvir o tambor celestial[16], a flecha será expelida de sua carne sozinha e o veneno será neutralizado. A flecha não havia penetrado tão profundamente, nem o veneno era tão forte que ele não pudesse se recuperar. Da mesma forma é para com os seres sencientes que têm cometido transgressões por muitos kalpas, mas atingem o renascimento na hora da morte através das dez puras recitações.

c) Questão de Certeza de Salvação

Quando os seres sencientes cometem transgressões, eles o fazem a partir do estado mental interveniente ou no estado pós-mental. Esses dois estados mentais não se aplicam, contudo, à hora da morte. Há apenas um, extremamente poderoso, completamente intenso pensamento de recitação, abandonando tudo antes da morte. Assim o renascimento é atingido.

Isso é análogo a um cabo forte e muito grande, que nem milhares de pessoas podem partir. Mas uma simples criança brandindo uma espada celestial pode cortá-lo em inúmeros pedaços sem nenhuma dificuldade. É como uma enorme pilha de madeira acumulada por milhares de anos, que, quando queimada por uma pequena chama é completamente consumida dentro de um curto espaço de tempo. O mesmo é verdade sobre alguém que pratica as dez virtudes ao longo de sua vida, tentando renascer em algum dos paraísos. Se, na hora da morte, desenvolver um único intenso pensamento vicioso, ele vai cair imediatamente no Inferno Avīci.

Embora o mau karma seja intrinsecamente falso e ilusório, a força derrotista da mente e pensamentos podem perturbar uma vida inteira de bons karmas e causar a queda aos oito caminhos. Como, então, pode a recitação do nome do Buda, que é um karma verdadeiro e completo, gerado intensamente na hora da morte, falhar em derrotar o mau karma, mesmo que esse karma tenha sido acumulado desde os tempos imemoriais? Assim, alguém que tem cometido transgressões por muitos kalpas, mas, na hora da morte realiza dez recitações com uma mente completamente diligente, certamente renascerá na Terra Pura. Não atingir o renascimento sob tais circunstâncias é algo certamente inconcebível!

Os sutras ensinam:
"Uma única recitação sincera do nome do Buda Amitābha extingue as graves transgressões de oito milhões de kalpas de nascimentos e mortes."

Isso é possível porque o praticante recita o nome do Buda com uma mente de inigualável sinceridade e assim pode aniquilar seu mau karma. Assim, quando em seu leito de morte, ele pronuncia o nome do Buda com tal configuração mental, ele está seguro de seu renascimento. Não pode haver mais dúvidas sobre isso!

Tradicionalmente, é explicado que a habilidade da pessoa prestes a falecer em proferir as dez recitações é devida inteiramente a bons karmas anteriores. Essa explicação, contudo, não é correta. Por quê? Porque, como afirma um comentário, "se fosse meramente uma questão de karma prévio, apenas o voto de renascer seria necessário e não haveria lugar para a prática."

O praticante que, no leito de morte, realizar dez recitações, está apto a fazê-lo por causa de suas prévias boas condições e por causa de sua sincera e comprometida recitação. Atribuir o renascimento exclusivamente a bons karmas anteriores seria um grande erro! Eu espero que os praticantes venham a ponderar sobre essa verdade mais cuidadosamente, desenvolvendo uma mente firme e não se deixem afastar por pontos de vista errôneos.

Questão 9:

A Terra Pura Ocidental está a dez bilhões de terras búdicas distante daqui. Pessoas comuns, simples, são fracas e débeis. Como eles a alcançarão?

Resposta:

A Terra Pura Ocidental é descrita como estando há dez bilhões de terras búdicas distante daqui apenas no que diz respeito aos conceitos limitados das pessoas comuns com olhos de carne e sangue, mergulhados no nascimento e morte.

Para aqueles que atingiram o puro karma do renascimento na Terra Pura, a mente em samādhi na hora da morte é precisamente a mesma mente renascida na Terra Pura. Tão logo o pensamento do renascimento surge, o renascimento foi alcançado. Dessa forma o Sutra da Meditação atesta que "a Terra do Buda Amitābha não está longe daqui!" Além disso, o poder do karma é inconcebível. No espaço de um único pensamento, o renascimento na Terra Pura é atingido. Não há razão para se preocupar com distância física.

Isso é análogo a uma pessoa que cai no sono e sonha. Embora seu corpo esteja na cama, sua mente viaja por todos os mundos, como se estivesse acordado. Renascer na Terra Pura é, resumidamente, semelhante a esse exemplo[17].

Questão 10:

Eu agora decidi buscar o renascimento na Terra Pura do Ocidente. Contudo, eu não sei que práticas cultivar, nem quais são as sementes do renascimento na Terra Pura do Ocidente. Além do mais, pessoas simples têm famílias e não conseguem se afastar do apego e do desejo. Mesmo assim eles ainda podem atingir o renascimento?

Resposta:

Se um praticante deseja se assegurar de seu renascimento, ele deve aperfeiçoar duas práticas: a prática da aversão aos cinco desejos e a prática a alegria nos votos.

a) A prática da aversão refere-se ao fato de que as pessoas comuns têm sido presas aos cinco desejos desde o tempo imemorial. Assim, elas perambulam pelos seis caminhos, suportando sofrimentos indescritíveis. Nesse lamaçal, a menos que criem aversão aos cinco desejos, como poderão escapar do ciclo de nascimentos e mortes?

Assim, o praticante da Terra Pura deve constantemente visualizar o corpo como uma massa de carne e ossos, sangue e pus. Um saco de pele contendo muco, pus, urina, fezes e outras impurezas que emitem os quatro tipos de odores fétidos[18]. O Sutra do Mahaparinirvana diz:

"Essa é a fortaleza do corpo, apenas demônios vis e iludidos a toleram. Quem em sã consciência se apegaria ou se deleitaria em tal saco de pele?"

Outra escritura atesta:

"Este corpo é uma confluência de todos os tipos de sofrimento; é uma cadeia, uma prisão, uma massa de úlceras onde tudo é impuro. Na verdade, não há nada nele que mereça se apegar e mesmo nos corpos celestiais das divindades não há diferença."

Por isso, mesmo que esteja andando, parado ou sentado, reclinado, dormindo ou acordado, o praticante deve sempre visualizar este corpo como nada além de uma fonte de sofrimento, sem nenhum prazer, desenvolvendo um profundo senso de aversão.

Além disso, o praticante também deve se esforçar nos sete tipos de meditação sobre a impureza, ou seja, como um feto no impuro e contaminado interior do útero, bebendo o sangue da mãe, emergindo do útero entre pus e sangue jorrando, junto de odores desagradáveis em profusão. Depois a morte, com o corpo inchando e apodrecendo com a carne e os ossos se soltando.

Nossos corpos sendo assim, não se diferenciam dos corpos alheios. Se nós constantemente meditarmos nas sete impurezas, vamos desenvolver a aversão sobre as formas, tanto masculinas quanto femininas, que as pessoas comuns consideram belas e aprazíveis. As chamas do desejo incontrolável assim gradualmente diminuem.

Se, em adição, praticarmos as meditações nos nove tipos de formas desagradáveis, o cadáver fresco, inchado, expelindo sangue e os outros progressivos estágios da decomposição do corpo humano após a morte, seria ainda melhor.

Nós também deveríamos fazer votos de estar para sempre livres de renascer num iludido e impuro corpo masculino ou feminino no mundo tríplice, alimentando-se de uma variedade indefinida de comidas e ao invés disso, aspirar dotar-se do corpo da natureza do Dharma da Terra Pura.

Nisso consiste uma discussão geral sobre a prática da aversão.

b) Há de uma forma geral dois aspectos em se fazer o alegre voto de resgatar a si mesmo e aos outros.

1) O praticante deve claramente compreender a meta do renascimento, que é buscar a fuga do sofrimento para si mesmo e para todos os seres sencientes. Ele deve pensar assim, "Minha força é limitada e eu estou preso ao resultados das minhas ações. Quanto mais, nessa vida vil e contaminada, as circunstâncias e condições que guiam às aflições são poderosas. É por isso que tanto eu quanto os outros seres sencientes estamos afogados no rio da ilusão, perdidos entre os maus caminhos desde os tempos imemoriais. A roda dos nascimentos e mortes está girando sem cessar. Como eu posso encontrar um caminho para resgatar a mim mesmo e aos outros de forma certa e segura?

"Não há outra saída, devo buscar o renascimento na Terra Pura, aproximar-me dos budas e bodhisattvas e, confiando no insuperável e afortunado ambiente daquele reino, esforçar-me no cultivo e atingir a compreensão do não-nascimento. Apenas então eu poderei adentrar a um mundo vil para resgatar os seres sencientes."

O Tratado sobre o Renascimento diz
"Desenvolver a mente búdica é precisamente buscar o estado de buda. Buscar o estado de buda é desenvolver uma mente ocupada em resgatar os seres sencientes. Uma mente ocupada em resgatar os seres sencientes não é outra que não a mente que reúne todos os seres e os ajuda a atingir o renascimento na Terra Pura."

Além disso, para assegurar o renascimento, nós devemos aperfeiçoar duas práticas: o abandono dos três fatores que impedem a iluminação e a habitação nos três fatores que nutrem a iluminação.

Quais são os três fatores que impedem a iluminação?

Primeiro, uma mente que busca a própria paz e felicidade, ávida em satisfazer o ego e apegada ao próprio corpo. O praticante deve seguir o caminho da sabedoria e abandonar tais pensamentos.

Segundo, uma mente de abandono e falha em resgatar os seres sencientes do sofrimento. O praticante deve seguir o caminho da compaixão e abandonar tais pensamentos.

Terceiro, uma mente de buscar apenas elogios e ofertas, sem buscar formas de beneficiar os seres sencientes e oferecer a eles paz e felicidade. O praticante deve seguir o caminho dos meios hábeis e abandonar tais pensamentos.

Uma vez abandonando tais três impedimentos, o praticante obterá os três fatores que nutrem a iluminação. Eles são:

Primeiro, a imaculada mente pura de não buscar a própria satisfação. Isso quer dizer que a iluminação é o estado de pureza imaculada. Se buscamos nossa própria satisfação, o corpo e a mente se contaminam e obstruem o caminho da iluminação. Por isso, a imaculada mente pura é chamada de consonante com a iluminação.

Segundo, a pacífica mente pura, resgatando a todos os seres sencientes do sofrimento. Isso é assim porque a mente búdica é a imaculada mente pura que oferece a paz e felicidade a todos os seres sencientes. Se nós não estamos resgatando os seres sencientes e os ajudando a escapar do sofrimento do nascimento e morte, estamos indo na direção contrária ao caminho da sabedoria búdica. Por isso, uma mente focada em salvar os outros, ofertando a eles paz e felicidade é chamada de consonante com a iluminação.

Terceiro, uma bem aventurada mente pura, auxiliando os seres sencientes a atingirem o grande nirvana. Sendo o grande nirvana o reino da suprema e eterna bem aventurança, se não ajudamos os seres sencientes a alcançá-lo, obstruímos o caminho da sabedoria búdica. Consequentemente, uma mente que busca auxiliar os seres sencientes a alcançar a eterna bem aventurança é chamada de consonante com a iluminação.

Como poderíamos abandonar os fatores que nos impedem a iluminação e habitar os fatores que nutrem a iluminação? Precisamente através de buscar o renascimento na Terra Pura do Ocidente, permanecendo constantemente próximos aos budas e bodhisattvas e cultivando o Dharma até que se alcance a compreensão do não-surgimento. Nesse momento, poderemos navegar o barco dos grandes votos assim como desejarmos, adentrar ao mar de nascimentos e mortes para resgatar os seres sencientes com sabedoria e compaixão, adaptando-se às condições, mas fundamentalmente imutáveis[19], livres e desimpedidos. Aqui termina nossa discussão sobre a meta do renascimento.

2) O praticante deve em seguida contemplar as características da Terra Pura e a afortunada aparência do Buda Amitābha.

Afortunada aparência:

O Buda Amitābha possui o corpo de recompensa resplandecente e dourado, repleto das 84 mil marcas maiores e cada uma delas possui as 84 mil marcas menores, das quais, cada uma emite 84 mil raios de luz que iluminam todo o reino do Dharma, atingindo a todos os seres sencientes que recitam o nome desse Buda.

Características da Terra Pura:

A Terra Pura do Ocidente está adornada de sete tesouros, como explicados nos sutras da Terra Pura[20].

Além disso, quando se pratica a generosidade, mantendo os preceitos e realizando todos os tipos de bons atos, os praticantes da Terra Pura devem sempre dedicar os méritos ao renascimento na Terra Pura para si mesmos e para todos os outros seres sencientes.

Se o praticante cultivar a alegria nos votos, como explicado acima, ele desenvolverá uma mente de esperança e anseio pela Terra Pura e atingirá o renascimento sem falta. É isso que significa fazer o voto de resgatar a si mesmo e aos outros.





[1] Reinos do desejo, forma e não-forma.
[2] “Nos ensinamentos budistas (...) uma pessoa que não se iluminou é, por definição, enferma. O processo de cura é a orientação distante do sofrimento, rumo à aspiração pela iluminação.” (Raoul Birnbaum, The Healing Buddha, p. xiv)
[3] Este tratado das Dez Dúvidas sobre a Terra Pura, já foi traduzido antes por Leo Pruden, para o The Eastern Buddhist, de maio de 1973. Ele empregou a expressão “discernimento do não-surgimento.” Charles Luk usou o termo “resistência paciente do incriado.”
[4] A mente envolvida pela aspiração em atingir a iluminação. Envolve dois aspectos paralelos, a determinação em atingir o estado de buda e a aspiração em resgatar a todos os seres.
[5] Existência no mundo Saha, chamada de má porque é preenchida pelas cinco corrupções, tais como pontos de vista sujos, quando toda sorte de visões errôneas prevalecem e a impureza das paixões, ódio e outras máculas predominam.
“Śāriputra, você deve estar ciente de que nesta era maligna das cinco corrupções, eu realizei a mais difícil tarefa. Obtive o supremo e perfeito conhecimento. Pelo bem de todo o mundo eu proclamo esse Dharma que é muito difícil de acreditar. É extremamente difícil.” (Sutra de Amitābha)
[6] “Então o Buda declarou, “Não é possível para alguém que ainda está atado, libertar a outros de suas amarras. Mas aquele que está livre, sim, está apto a libertar os outros de suas amarras.’” (Sutra de Vimalakīrti)
[7] Não-nascimento, também traduzido como não-surgimento ou não-originação.
[8] 1) Verdade relativa ou convencional. Constatação diária do ambiente mundano sujeito à ilusão e dicotomias e a 2) Verdade última ensinada pelo buda.
[9] Conceito chave do Budismo, tudo é construído pela mente.
[10] Outro conceito chave do Budismo Mahāyāna, particularmente popular na escola Avatamsaka.
[11] Na Encyclopedia of Buddhism, vol. I, G.P. Malalasekera cita um autor japones que listou duzentos textos referindo-se ao Buda Amithaba e sua Terra Pura, sendo trinta e um desses textos em sânscrito.
[12] Renascer através do outro poder é, em efeito, renascer através da ênfase nesse outro poder, não de exclusiva confiança nele.
[13] O propósito de ver o Buda é estar apto a ouvir seus ensinos diretamente, ao invés de percorrer fontes intermediárias como sutras, comentários, etc. Assim, se os praticantes renascem na Terra Pura, como afirma o Sutra Surangama:
“Eles jamais se afastarão do Buda e suas mentes despertarão espontaneamente, sem a necessidade de expedientes. Aquele que esteve próximo do incenso também carrega sua fragrância.”
[14] O Tratado da Perfeição da Sabedoria atesta:
“A Terra Pura não está incluída no mundo tríplice (...). É o resultado das ações do Bodhisattva Dharmākara que permite que isso aconteça. Ela existe extra-fenomenicamente e assim podemos chamá-la de sutil.” (T’an-Luan citado por Roger J. Corless, “Pure Land and Pure Perspective,” The Pure Land, Dezembro de 1989)
[15] A maior parte sutras budistas foram escritos há quase - ou mais de - vinte séculos atrás, quando a ordem monástica era quase que totalmente composta por homens. Assim, a palavra originalmente usada no texto, “mulheres”, pode nesse contexto ser compreendida mais acertadamente como “formas sedutoras”, do que simplesmente como “pessoas do sexo feminino”.
“Quando investigando o imagético feminino na literatura budista, é importante manter em mente o contexto social e cultural em que os ensinamentos foram dados. Os textos originais apresentam uma variedade de imagens, em nenhum sentido contraditórias, mas expressando a necessidade de diferentes ouvintes com diferentes capacidades de compreensão. Um ponto a ser considerado, por exemplo, é o de que muitos discursos nesses textos iniciais eram direcionados a auxiliar homens celibatários a destruir seus apegos à forma feminina. Tendo o Buda se voltado a mulheres celibatárias, problemas na forma masculina também seriam semelhantemente elaborados.” (Karma Lekshe Tsomo, Daughters of the Buddha, p. 22)
[16] Antídoto.
[17] A segunda parte dessa questão lida com a dúvida levantada no Comentário sobre o Renascimento (século II EC), se mulheres e certos grupos de pessoas são capazes de renascer na Terra Pura. O Grande Mestre Chih-i responde com uma afirmação vigorosa e cita o Sutra da Meditação, que foi proferido para a Rainha Vaidehī e suas quinhentas assistentes femininas, todas atingindo o supremo renascimento naquela Terra Pura.
[18] A visão budista sobre o corpo como um saco de pele cheio de excremento não é nada além de realista. Se fosse um pensamento de aniquilação, cairia no niilismo, afinal, o mesmo corpo é uma ferramenta para a iluminação.
[19] Conceito chave no Budismo de que o ensinamento é infinitamente adaptável, mas aquilo que é verdade continua sendo o mesmo.
[20] Dentre a grande quantidade de números que ocupam papéis simbólicos nas escrituras budistas e seus comentários, os sete tesouros representam os sete poderes de quem renasce na Terra Pura, confiança, perseverança, arrependimento, afastamento do engano, atenção plena, concentração e sabedoria.