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segunda-feira, 2 de junho de 2014

O Deus de Descartes

“Pelo nome Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e pela qual eu mesmo, e todas as outras coisas que existem (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que a ideia que tenho dele possa tirar sua origem só de mim. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir de tudo o que disse anteriormente que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de eu ser uma substância, eu não teria, contudo, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido posta em mim por alguma substância qu fosse verdadeiramente infinita.”


Meditações Metafísicas
René Descartes


O parágrafo acima, extraído da terceira meditação do livro “Meditações Metafísicas” de autoria de René Descartes, é a essência da primeira demonstração da existência de Deus que aparece no livro. Nota-se que o filósofo pretende desenvolver sua demonstração cientificamente e não simplesmente dar uma prova da existência do Ser Absoluto.

Esta argumentação científica não diz respeito ao conceito contemporâneo de ciências, mas sim ao sentido moderno, que consiste em articular uma cadeia de pensamentos capazes de exaurir um assunto, não permitindo brecha para discussão, apresentando-se de modo unívoco.

Muitos filósofos tentaram demonstrar a existência de Deus, Agostinho, por exemplo, partiu do conceito de “série de perfeições”, que classificava as substâncias em ordem de perfeições, desde um grão de areia, passando por seres dotados de senciência até chegar no homem e a partir do homem propunha uma “extrapolação” para seres ainda mais perfeitos, como anjos, até que se atingisse o nível máximo, ou seja, o Ser dotado de todas as perfeições. Propôs, assim, uma espécie de escala, exergando a Perfeição como uma positividade passível de grau qualitativo.

Descartes segue um caminho semelhante, porém não se atendo a comparação entre seres ou coisas, mas entre ideias menos ou mais perfeitas, finitas ou infinitas, através de uma argumentação “a posteriori” na terceira meditação. Uma demonstração “a posteriori” consiste, segundo Descartes, a provar uma causa a partir dos seus efeitos; o cachorro filhote revela que existiram seus pais, mesmo que nunca os tenhamos visto. Este tipo de fundamentação até pode evidenciar uma verdade, mas tem uma limitação: analogamente ao exemplo do cachorrinho em que, embora seja possível admitir que ele tenha pais, não se pode afirmar quem são estes indivíduos; no caso da existência de Deus, a demonstração pode até atingir seu objetivo persuadindo alguém admitir a obrigatoriedade de que haja um Deus, sem, entretanto, revelar em detalhes quem seria este Deus. Com efeito, fica evidente que Descartes não está a discorrer sobre um Deus específico, a exemplo do Deus cristão, mas mesmo assumindo-se católico, está a falar de um conceito de divindade mais genérico. Ou seja, o objeto de estudo para o filósofo não é a teologia (que se preocupa com a revelação, a mensagem divina, que vem de fora para dentro do homem), mas sim a metafísica, a filosofia primeira, que é a verdade que brota de dentro para fora do homem e é um percurso repetível, demonstrável.

O cartesianismo é a filosofia da liberdade. Liberdade esta que é exercida pelo espírito (aquilo que tem vontade) e pela capacidade humana de se duvidar. Tais características provocam uma polarização entre a essência pensada (como o ser pensante julga ser o mundo) e a essência objetiva (como o mundo realmente é), separada por algo que metaforicamente poderia ser descrito como um “vão”. Este “vão”, criado entre essas essências é a pŕopria metafísica. Só um espírito livre poderia questionar o mundo da forma com que a meditação primeira fez. Partindo-se da dúvida levada às últimas consequências e com o objetivo de se atingir a compreensão da realidade sem delusões, o filósofo busca construir seus raciocínios em base sólida, pautando-se em conceitos fundamentais e resistentes a quaisquer indagações, a fim de desenvolver um método preciso que facilmente discirna o verdadeiro do falso. Para isso coloca em xeque a própria existência, duvidando dos sentidos e suspendendo, inclusive, a imaginação (questionando a diferença entre estar “acordado” ou sonhando). Dessa desconfiança toda, alcança sua primeira conclusão unívoca, o Cogito, ou seja, de que mesmo sendo enganado pelos sentidos, pela imaginação ou pela própria consciência, não haveria de se duvidar que ele era uma “coisa pensante” ou “uma coisa existente”. Esta conclusão torna-se então premissa para que sistematicamente o autor desenvolva as demais meditações em “terra firme”, e o Cogito é uma condição sine qua non para a demonstração da existência de Deus, como será visto posteriormente.

“E assim, para que procedesse quão cautelosissimamente possível na investigação das coisas, Descartes esforçou-se por:

1) Despojar-se de todos os prejuízos.
2) Encontrar fundamentos sobre os quais se há de construir tudo.
3) Descobrir a causa do erro.
4) Inteligir tudo clara e distintamente.

Porém, para que pudesse conseguir o primeiro, o segundo e o terceiro, começa por colocar tudo em dúvida, não como o cético, decerto, que não se fixa nenhum outro fim que duvidar, mas para que livrasse o ânimo de todos os prejuízos, com o que finalmente encontrasse os firmes e inconcussos fundamentos das ciências, que deste modo, caso os haja, não lhe possam escapar. Com efeito, os verdadeiros princípios das ciências devem ser a tal pontos claros e certos que não precisem de nenhuma prova, estejam postos fora de todo risco de dúvida e sem eles nada possa ser demonstrado”

Princípios da Filosofia de René Descartes demonstrados à maneira geométrica – Espinosa.

Após as duas primeiras meditações, Descartes conclui ser uma substância, porém limitada pelos sentidos lubridiantes e pela imaginação.
O termo substância significa aquilo que permanece constante depois de toda e qualquer transformação. Como, por ilustração, é sabido empiricamente que a substância água permenece água em seus três estados físicos ou como alguém chamado João continua sendo a mesma pessoa desde a infância à velhice (o João não se transforma em Pedro no decorrer da vida, por exemplo).

Um ser pensante, descoberto pela experiência do Cogito, é aquele que produz ideias. Ideias são articulações intelectuais entre coisas, a ideia de Deus provém da articulação da perfeição dada em ato. Com efeito, Descartes parte de duas premissas para demonstrar Deus: a necessidade da causa (causalidade  - transmissão de efeitos entre entes) e do infinito dado em ato, a fim de  dissuadir o leitor a aceitar o raciocínio dos efeitos (para causas “posteriores”).

O pensamento humano consegue satisfatoriamente lidar com a natureza e a experiência sensível, todavia, não tem o mesmo êxito ao tentar explicar a “causa da causa” insensantemente ao infinito: o universo veio do Big Bang, mas antes deste fenômeno, o que havia? Ou seja, a mente nunca consegue reproduzir a origem primeira dos efeitos, induzindo-nos a crer que a realidade do infinito está além da nossa natureza finita. Sempre quando contamos números, por exemplo, o infinito está um passo adiante, o que gera no pensador sincero uma certa estranheza diante de fenômenos que não têm começo e nem fim, ou seja, eternos. A imaginação não pode dar conta de um polígono de infinitos lados; o intelecto, apesar de aceitar o conceito, também demonstra insuficiência. No campo das perfeições, o intelecto é incapaz de projetar todas as perfeições ao infinito. Entretanto, mesmo com todas estas limitações e imperfeições, não se pode negar que a ideia de infinito/perfeito/eterno contém mais realidade substancial do que a própria “coisa portadora da ideia”.

Descartes dizia que o homem não conhece Deus e nunca teve contato com a perfeição completa, tendo em vista que não a experimenta na natureza. Da mesma forma, sendo ele próprio finito e sendo tudo o que está à sua volta finito, não lhe seria possível conceber a ideia de infinitude e de perfeição se não tivesse em si mesmo, de forma inata, essa ideia. Sendo assim, para Descartes, a origem dessa ideia é Deus, que a imprime na mente humana antes do nascimento.

Consequentemente, Deus, conceito cuja densidade não poderia ser desenvolvida por um ser finito, realmente existe. Se compreendo a palavra Deus, há a ideia de Deus em mim (ideia de algo infinito); a ideia de infinito absoluto se funde então com a ideia de Deus e só poderia ser gerada se realmente existisse este Deus (efeito-causa).

Na tentativa de refutar essa demonstração de Deus, filósofos como Locke e também Hume afirmavam que tais ideias são frutos da capacidade humana de compor conceitos complexos ou compostos. A convivência com o tempo finito, por exemplo, demonstra que umas coisas duram mais e outras duram menos. Sendo assim, o homem pode imaginar algo que dure sempre, estendendo indefinidamente a passagem do tempo.

Da mesma forma, a convivência com as diversas formas e quantidades, se estendidas, podem gerar as ideias de infinidade e também podem se combinar, gerando formas inexistentes na experiência sensorial. Desta forma, vendo um velho que morre aos 100 anos, o homem pode ir acrescentando anos imaginários à experiência sensorial dos 100 anos. Seus sentidos aprenderam a ideia de "ano" e de uma sequência grande deles (100). Daí, a imaginação estende de forma indefinida esse padrão e gera a "eternidade".

Da mesma maneira, o homem vê um grande edifício e vai o aumentando imaginariamente, até que seja infinitamente grande, sem que haja, no entanto, necessidade de uma experiência sensorial direta com algo infinitamente grande. Daí também nascem os seres fantásticos, como o capricórnio, demônios, duendes, monstros, centauros, dragões e até mesmo um deus.
Descartes, prevendo esse tipo de objeção, escreve ser impossível extrapolar ideias adquiridas através da experiência sensorial para conceitos de infinitude e eternidade, como afirmavam Locke e Hume, pois o infinito não é uma simples negação do finito, como o frio é do calor. O frio não tem realidade substancial, sendo simplesmente a ausência do calor, já o infinito contém em si realidade substancial maior que o finito, inclusive, o domínio daquele contém o domínio deste. A respeito dos seres mitológicos, todos eles são realmente composições de ideias oriundas da atividade sensorial, porém, um Deus uno e com todas as positividades elevadas ao infinito não poderia ter origem, em hipótese alguma, na mente de seres limitados, como os humanos.

“E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente pela negação do que é finito, assim como compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz; já que, ao contrário, vejo manifestamente que se encontra mais realidade na substância infinita, e, portanto, que tenho de alguma forma em mim primeiro a noção do infinito do que do finito, ou seja, de Deus do que de mim mesmo. Pois como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, ou seja, que me falta algo e que não sou totalmente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma ideia de um ente mais perfeito do que o meu, por comparação ao qual eu conheceria os defeitos de minha natureza?”

Meditações Metafísicas
René Descartes

Descartes, com o Cogito, assegurou certezas sobre si próprio, mas isso não era suficiente, pois se fazia necessário provar cientificamente o mundo “exterior”. Demonstrar Deus foi o elo encontrando pelo filósofo entre a interioridade e a exterioridade; se não fosse possível assegurar a existência de um Deus que tivesse em si todas as características perfeitamente boas, Descartes não conseguiria desenvolver nada a mais do que algumas verdades básicas de sua interioridade e não venceria o ceticismo da dúvida inicial. Por outro lado, se fosse possível estabelecer a existência deste Ser sumamente bom, Descartes obteria a garantia absoluta de que o mundo é como pensamos. Seria a vitória da certeza racional, cuja qual Deus equipou o homem, sobre a incerteza “eterna”.

Enfim, o primeiro ser externo a si mesmo descoberto após o Cogito por Descartes foi Deus, antes mesmo das coisas ou outros seres percebidos pelos sentidos; isso mostra o quanto a ideia clara e distinta é considerada pelo pensador como superior à própria experiência empírica, pois até a meditação estudada, os próprios sentidos estavam sob a dúvida cartesiana.

Descartes, nessa primeira demonstração “a posteriori” apresentada, introduz a ideia de que como seres finitos, não conseguiríamos por nós mesmos criar a ideia de infinito, se esta não fosse colocada em nós pelo Ser Absoluto, ou seja, Deus.

Em suma, não conseguiríamos pensar em um domínio com esta amplitude, que propõe todas as positividades elevadas ao infinito e que, consequentemente, contivesse o nosso domínio marcado por limitações e incertezas, se o infinito realmente não existisse. Com isso Descartes admite que, da mesma forma com que o sentido de infinito reside nele, o sentimento de um Deus que se manifeste perfeitamente também residiria.

Bibliografia:
1. Descartes, René. Meditações Metafísicas; 3ª. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2011.
2. Agostinho. Confissões; tradução de J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 2ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
3. Espinosa, Baruch. Princípios da Filosofia de René Descartes demonstrados à maneira geométrica; 3ª. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2011.
4. Locke, John. Of the Conduct of the Understanding; Kessinger Publishing, LLC, 2010.
5. Hume, David. Tratado da Natureza Humana; 2ª. Ed, São Paulo, SP: UNESP, 2009.

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