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quarta-feira, 11 de junho de 2014

A Justiça e a Política

No Digesto se diz que a Justiça consiste em dar a cada um o seu Direito (Jus Suum)

INTRODUÇÃO

A Justiça é a questão Política por excelência. Neste contexto, este trabalho se aterá fundamentalmente à Justiça em seu sentido político e não em seu sentido ético; buscando apoiar-se na construção do conceito nas Instituições, no ordenamento social, o que é diferente de preocupar-se somente com a questão da Justiça individual.
Qual é a relação entre Justiça e Política? Esta precede ou se sucede daquela? O artigo objetiva comparar as concepções de Marco Túlio Cícero - um filósofo antigo - em sua obra “Da República”, com as concepções do moderno John Locke, no livro “Dois Tratados Sobre o Governo”; apontando algumas divergências e convergências entre os filósofos, para que ao final desenvolva minha posição que, ainda que mescle conceitos ciceronianos, aproxima-se mais da perspectiva lockenana.

Cícero


Locke

DESENVOLVIMENTO
I – Cícero

“...a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum.”
Da República, I:25

República, para os antigos, pode ser entendida de duas formas: como o Estado, polis, ou seja, a cidade como coisa pública ou simplesmente como uma Forma de Governo.
Cícero consolida a tradição Republicana, partindo-se do pressuposto de que a melhor forma de governo é a mais justa. Parte do exemplo romano para chegar a um conceito mais amplo da ideia de República.
A Coisa comum, mencionada no trecho citado, significa pertencer a todos como um povo e não a um indivíduo separado. Esta coisa comum seria composta primordialmente de Justiça, mas também levando-se em conta a Utilidade. O povo seria compelido a se convencer da Justiça através de um Juris Consensus (o direito, o justo) para aliar a Justiça à Utilitas Comum (interesse comum), defendendo que a Justiça têm uma relação direta com a Utilidade  e apresentam-se unidas. Assim, deliberar bem é articular Justiça e Utilidade. A formação da cidade é para que prioritariamente se realize em seu interior a Justiça. Porém, também há deliberação para meios de prosperidade, conforto, etc. (opes/potentia).
Seguindo o pensamento estoico de que a Virtude é um Bem em si mesma e, portanto, não é um fim para a felicidade, Cícero procura aliar um “Bem em si mesmo” com a Utilidade que é um meio para determinado fim. A busca do útil estaria interconectada com a Virtude, desmistificando a ideia de que Útil é necessariamente ruim.

A sociedade, além de ser um fim em si mesma, também carrega em si o valor de Utilidade, por exemplo, no desenvolvimento de infraestrutura, subsistência, etc. Não almeja apenas ser útil para todos, mas também no ponto de vista dos particulares.
Entretanto, a Utilidade não se restringiria apenas ao valor econômico. A articulação entre o justo e o honesto também abrangeria o capital social, como a honra e a reputação, que são meios para se realizar a Justiça. Não há contradição em se buscar recursos políticos e em buscar a virtude; o melhor meio de se aliciar pessoas é através da Justiça - nada é mais útil ao homem do que o próprio homem.
O pensador romano aborda a Virtude da Justiça como vida ativa/prática e não um tratado sobre um Bem absoluto, sendo algo que se evidencia por meio de ações no âmbito da cidade (em oposição aos gregos contemplativos que consideravam que os sábios deveriam se retirar da vida pública). Este saber prático almeja manter a pólis coesa, para que a Justiça Política seja alcançada e isso se dá pela boa deliberação, segundo a reta razão que se faz em meio às circunstâncias cotidianas da cidade.

Na discussão sobre a melhor forma de governo, Cícero, baseando-se no sucesso de Roma, defende a República, pois esta escapa das limitações e dos aspectos desviantes dos sistemas puros. A Monarquia tenderia à tirania caso fosse administrada por um corrupto. Desse desvio surgiria a Aristocracia, a fim de tirar o tirano do poder. Por sua a vez, a Aristocracia seguiria o mesmo caminho com o tempo, com os aristocratas deliberando em causa própria. Então, para conter os aristocratas corruptos o povo se rebela e restabelece a ordem. Todavia, com o passar dos anos, o governo popular se transforma em desordem pela diversidade de interesses conflitivos, pois não há um centralizador. Para suprir o problema o povo elege um rei e o ciclo se repete.

Deste modo a constituição de Roma conseguiria reunir o que de melhor há nos sistemas puros e romperia com os ciclos das revoluções. Os aspecto monárquico nas decisões de guerra, aristocrático pelo congresso que modera e aconselha o rei e o democrático quando, em alguns momentos, a nação tem poder de veto e de fazer outras intervenções. Essa foi então a forma, sem precedentes, com que Roma resolveu o problema da degeneração, garantindo ao povo o direito de viver em uma sociedade justa e que lhe atendesse as necessidades.

O Livro II da República detalha melhor como funcionava o Governo Misto.
Roma é um caso bastante peculiar, foi bem fundada numa boa constituição, ainda com o diferencial de que esta fundação era flexível o suficiente para ser aperfeiçoada pelas gerações seguintes. A boa fundação aconteceu através de um Mito (Rômulo e Remo) que exaltava a cidade e por um sábio fundador, Rômulo. Sendo o Mito verdadeiro ou não, este foi capaz de provocar o patriotismo nos cidadãos. O fundador teve a capacidade de angariar seguidores, convencendo-os do potencial da nação. Foram dois os mecanismos pelos quais Rômulo legitimou seu poder:

1) Não governou sozinho; utilizou-se de um conselho, aliando Regia Potestas à Auctoritas Optimi. O conselho era formado por retóricos que não tinham o poder, mas tinham livre acesso ao governante e poder de convencimento. Poder investido de autoridade (desde sua fundação Roma teve um governo misto).

2) Consulta aos deuses. Engrandecem, legitimam a ação do rei. Como Rômulo era um semideus, isso atribuía caráter sagrado à sua administração, trazia garantias ao povo de que governaria com Justiça.
Quando o primeiro rei injusto surgiu, Roma, alicerçada em sua forma de governo peculiar, já estava preparada. Os romanos souberam reter este tirano, através dos Optimis que introduziram dois cônsules no lugar do rei e o direito de apelo ao povo (Da República, II:31).

Esse fato mostrou que o problema não estava na constituição, mas na falta de virtude de quem estava no poder.
O desequilíbrio entre as classes também foi um inconveniente que Roma soube satisfatoriamente administrar. Segundo Cícero, por incompetência do senado, o “Conselho da Plebe” representava uma ameaça ao equilíbrio de direitos da pólis. Todavia, este mesmo senado, cedendo benefícios para acalmar o clamor popular, conseguiu retomar o poder e restabelecer a harmonia (Da República, II:34). Este episódio demonstrava que mais do que um governo misto é preciso de um governo misto e equilibrado (Da República, II:23).

Este Equilíbrio de ordens é comparado à harmonia de uma música, esta harmonia seria equivalente à Justiça, responsável pela longevidade da cidade. Cícero defendia que este Equilíbrio não é uma simples convenção, mas advém de uma necessidade de Justiça Natural e que as diferentes ordens estabelecidas na cidade são reflexo da própria natureza. Essa natureza se dá pela necessidade do homem em viver com outros homens (viver em harmonia e de forma perene).

Assim, a Justiça Natural estaria por detrás da constituição mista romana.
No Livro III “Da República”, o pensador romano apresenta sua defesa do conceito de Justiça Natural. De acordo com ele, o Sagrado está na Justiça Natural e a constituição romana, sendo fundamentada no Sagrado, daria vazão à Justiça Natural, propiciando a educação de homens virtuosos. É nos bons costumes que se ratifica esta Justiça. Essa “produção” de bons homens é o caráter sagrado (reflete uma disposição virtuosa). E sendo sagrado, opera com equanimidade.

Enfim, o bom ordenamento de uma pólis se dá pela deliberação do indivíduo virtuoso no interior da cidade. A humanidade se realiza no seio da própria sociedade (sociedade natural), porém requer o melhor do homem no desenvolvimento das excelências. Para Cícero não é o governo quem forma a cidade; o governo existe para que o povo que se formou perdure (articulando o útil ao honesto). O agrupamento ordenado é uma necessidade inata; a pura manifestação da Justiça Natural, que na constituição romana se traduzia pelo Juris Consensus e o Utilitas Comum. O Governo Misto foi a forma com que Roma encontrou a fim de vencer as degenerescências próprias das formas de governo puras, mas apenas o Governo Misto não bastou para manter o Direito de todas as classes. Roma não subsistiria se não houvesse nela o equilíbrio entre as diversas ordens (mesmo peso). A própria constituição, fundamentada no caráter Sagrado, desenvolveu mecanismos que venceram os desafios, foi capaz de manter o equilíbrio e garantiu uma participação satisfatória a todos. Para o filósofo, o caráter sagrado está diretamente relacionado com o critério da natureza e é essa característica quem faz de uma constituição uma Lei Justa. A República é a coisa do povo.

II – Locke

Na modernidade, a partir de Grotius, o foco da discussão deixa de ser a Justiça propriamente dita (Justitia) e passa a ser sobre o Direito pertencente a cada ser humano (Jus).
Enquanto Cícero narrou a Justiça Natural baseada na História das Instituições Civis, Locke apresenta sua perspectiva sobre a ótica do Direito Natural (Jus Naturalis).
O pensador inglês parte do pressuposto de que todos têm uma Propriedade Original, ou seja, que toda a pessoa é proprietária de si mesmo (Direito Natural), conferindo uma despolitização ao Jus; assim, na visão lockeana, não mais existe na Justiça a necessidade política, como afirmava Cícero. O Direito pode ser pensado fora da política.

O Direito Natural é algo que depende somente da natureza, diferentemente do Direito Civil que depende da vontade de um legislador, de cidadãos e do caráter sagrado. O Jus Naturalis não depende de enunciado algum e é tão real que pode ser produto de uma demonstração, como na matemática. O Direito requer ser conhecido e não mais acordado ou consentido.

“Para entender o poder político corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei de natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem.
Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer...”
Dois Tratados Sobre o Governo, II:4

O Estado de Natureza é descrito como um estado de liberdade e também de igualdade (sem subordinação, sem sujeição e de igual direito de apropriação). Esta é a situação original do homem antes da constituição política. Entretanto, Locke frisa que este Estado de Natureza tem um limite nas próprias Leis de Natureza, o qual é respeitar o Jus do outro.
Desta maneira, o Estado de Natureza já conteria em si relações jurídicas, ou seja, uma sociedade mínima, denominada comunidade natural. Desse estado, pode-se derivar duas leis naturais:

1) A primeira, já mencionada, não prejudicar o outro;

2) A segunda, expressa no parágrafo 7 do livro II. Direito de usar o próprio poder para fazer valer o direito de natureza, caso haja o desrespeito do seu Jus. A lei 1) e a Punição surgem concomitantemente e estão associadas.

Qualquer pessoa teria, então, direito de retribuir de modo proporcional à uma transgressão sofrida, para reparar o dando e desencorajar os demais. Esta proporção diz respeito ao punir na medida certa. O Direito de Punir pode ser exercido legitimamente, inclusive, pela força e é um poder anterior ao Poder Político. O Poder Político só passa a ser necessário quando, na degenerescência humana, o bom senso da proporção punitiva se perde e passa a ser substituído por medidas severas no intuito de vingança, ao invés de reparação.

Para Locke a propriedade é um Direito Natural, anterior ao Poder Político e o fundamento deste. É pré político porque ele já existe antes do Juris Consensus e não está ligado à subordinação.
A propriedade seria adquirida conforme o Núcleo Lógico do Trabalho, expresso pelo trinômio “pessoa-trabalho-propriedade”. Se há trabalho, há propriedade. À medida em que um corpo trabalha, ele vai expandindo sua propriedade, primeiramente sobre as coisas, depois sobre a terra que este planta e finalmente, após a invenção do capital, sobre o dinheiro. Se eu trabalho, se eu modifico, tenho direito à propriedade, sem a necessidade de qualquer consentimento (relação política). Além do Núcleo Lógico existe também o Núcleo Histórico, que segundo o próprio nome sugere, constitui-se historicamente, dependendo do quanto eu trabalho e expando minha propriedade.

Cada homem teria uma propriedade em sua própria pessoa (parágrafo 27). O trabalho de meu corpo é minha propriedade e se ninguém nada acrescentar à natureza, esta permanece em seu estado comunal.
A propriedade, entendida dessa forma, é uma dádiva de Deus para o usufruto de cada um, entretanto, torna-se também um dever de cada ser humano. É um Direito, mas ao mesmo tempo um dever. Os parágrafos 31 e 32 descrevem o que a Lei Natural diz a respeito deste dever.

Como foi Deus quem ordenou o trabalho ao homem, não é qualquer modificação que este pode fazer sobre a natureza, mas sim aquela que lhe trouxer valor de uso. Consequentemente, o limite da propriedade é a capacidade de se usufruir dela. O proprietário expandiria sua propriedade apenas o suficiente para sua subsistência, o mesmo ocorrendo com os vizinhos que, imbuídos da essência do Direito Natural, não desejariam mais do que o suficiente, sem aspirar o Bem alheio. Assim, a mesma Lei da Natureza que nos concede a propriedade, também a limita (o Direito se faz por si mesmo).
Parágrafo 27 esclarece qual é este limite. A apropriação não pode levar à escassez de recursos aos demais, este proceder seria um desrespeito ao Direito Natural do outro.

“Pouco espaço poderia haver para querelas ou contendas acerca da propriedade assim estabelecida”
Dois Tratados Sobre o Governo, II:31

A invenção do dinheiro acontece por uma circunstância histórica, acidental; não necessária e que acabou alterando as relações de propriedade. Surgiu devido à maior produção do que se poderia consumir, como uma forma de armazenar trabalho em crédito, ao invés de produtos. O dinheiro introduziu uma nova ideia de limites de propriedade, uma desproporção nas relações sociais de que a natureza por ela mesma não conseguiu organizar. Mais uma razão pela qual foi preciso estabelecer a Política em meio às relações sociais.

“não era necessário o homem ter saído desse equilíbrio, natureza; a política adveio desse desequilíbrio, nasceu por um problema econômico”.
Rosseau

Para Locke, o dinheiro, apesar dos supostos problemas que trouxe, não é de todo ruim, pois com ele facilitou-se a produção (parágrafo 37), sendo possível regulá-lo para a realização do Direito. O capital pode ser benéfico na medida em que transcende os limites da natureza, ampliando os bens de consumo tanto para mim, quanto para “meus vizinhos”. Ou seja, segundo o britânico, o dinheiro honesto facilita o acúmulo de bens sem usurpar o Direito alheio.

Qual seria então o espaço da Política na visão de Locke?
Como as relações naturais se degeneram, deve-se existir a Política para regulá-las (sociedade civil), evitando com que os homens vivam em Estado de Guerra. O Estado de Guerra é definido por Hobbes como um estado em que todos querem usufruir de seus direitos, contudo, ninguém quer assumir deveres (não há obrigações entre um e outro). Na eventualidade dessa disputa, a Política se antecipa (precaução) a fim de que a Propriedade de alguém não seja invadida. Locke jamais diria que a guerra é uma condição natural, mas diria que os povos podem cair numa condição de degenerescência que os levaria a contendas.

A degeneração ocorre quando alguém quer dispor da vida do outro. Quando o diálogo não consegue apaziguar uma dissensão, a Lei Natural “autoriza” o uso da força para autodefesa. Quem usa a força deve ser impedido pela força, assim como quando somos atacados por feras (atentado contra a vida). Quando o outro “sai da Lei”, impondo-se contra mim, também posso usar a força, porém legitimamente.

A própria Lei justifica seu estado de exceção; revelando quem está do lado de fora da Lei. O parágrafo 8 afirma que quem “sai da Lei” deve ser punido na medida correta para que a Justiça, os vínculos e as relações jurídicas sejam restabelecidas (nesse ponto Cícero e Locke convergem, ambos admitem o uso do força para o restabelecimento da Justiça).

Porém essa proporção no uso da força é difícil de ser encontrada sem a estruturação de uma sociedade civil. A Lei Natural não pode ser exercida de modo passional, pois desta forma, não se determinaria a proporcionalidade de uma punição e promover-se-ia a degeneração.

Nesse contexto entra em cena o Estado Político para evitar o estado de exceção e reinstalar o Universo Jurídico Natural. Com isso a Comunidade Natural se torna Política. O Consensus passa a ser árbitro dos problemas entre as pessoas, obrigando-as a seguir regras em comum. Com o Consensus, o poder de decisão individual é renunciado, dando lugar à decisão deliberada pela maioria em um Debate Público (pluralidade a uma só opinião).

A priori, os relacionamentos são bem regularizados pelo Jus Naturalis e representam a boa medida. Entretanto, a possibilidade de guerra faz com que a instituição do Estado Civil seja imprescindível para a proteção do Estado de Direito, pois nem todos os homens seriam capazes de reconhecer o Jus. O Consensus para Locke é a obrigação imposta pela Comunidade em se seguir leis acordadas previamente, mesmo que estas leis não representem opiniões individuais. Diferentemente do Juris Consensus romano de Cícero, que procurava convencer as pessoas das proposições decididas, numa negociação sempre presente. Essa abdicação parcial da Liberdade (não é total porque o cidadão tem participação no Debate Público) para a obediência ao Consensus se daria em prol da preservação da Propriedade, protegendo-a da violação. Assim a Política entraria com o objetivo de resguardar o Direito Natural, nunca em contraposição a este, para garantir certos direitos “mínimos”, como por exemplo, a Propriedade.

CONCLUSÃO

O artigo apresentou as visões de Cícero e Locke sobre a Justiça/Direito. Cícero parece dissertar apenas sobre o conceito de Justiça romano, considerando-o como o melhor regime já inventado. Apesar de ser um exemplo muito plausível, o pensador clássico não garante que a forma de governo romano (Governo Misto) funcionaria em outras sociedades ou em outros contextos. O filósofo defende o conceito de Justiça Natural ao afirmar que a mesma estaria diretamente ligada ao sentimento inato de convivência harmoniosa e perene entre os humanos. A Justiça Natural se constrói concomitantemente ao Estado Civil, manifestando-se diretamente através da Política.

Por outro lado, Locke confere à Justiça um caráter mais universal em toda sua narrativa. O pensador inglês, assim como a maioria dos modernos, muda o foco da discussão da Justiça para o Direito. Defende o Jus como um Bem Absoluto, que manifesta-se com origem no indivíduo e nas suas relações com os demais, afirmando que este indivíduo possui uma Propriedade Original inalienável sobre si mesmo e que esta Propriedade é expandida com o trabalho (Direito Natural). O Estado Civil para Locke teria a função apenas regularizadora do Direito, a fim de proteger a propriedade de pessoas degeneradas.

Apesar de não dispensar a excelente explicação de Cícero sobre a Justiça, prefiro a perspectiva de Locke, principalmente na ideia de Jus Naturalis e da especial atenção ao problema da degeneração humana.
Há o “sentimento” natural de Direito de Propriedade, que manifesta-se no homem de “reta razão”. Quanto mais o indivíduo dedica-se à “reta razão”, mais este percebe seus direitos e deveres para com os demais. Desta forma, reconhece não estar sozinho no mundo e o mal que ocasiona ao agir passionalmente. Assenta que o Bem comum é determinante para a manutenção da espécie, e consequentemente, para a manutenção da paz.

O cultivo da “reta razão” deve iniciar-se na percepção de pequenas manifestações que já se encontram em nós, por mais adormecidas que estas pareçam estar. Geralmente, ao presenciarmos, por exemplo, um animal inocente sendo agredido, ou mesmo uma criança ou um idoso; somos impelidos a ficar indignados e buscar alternativas para que a agressão se finde. Algo no alerta para o fato de que o Direito daqueles seres está sendo violado (nesse caso o Direito à Propriedade Original, ou seja, a própria vida). Semelhantemente, quando alguém pega o que não é seu, ou invade uma propriedade, também tendemos à desaprovação (nesse caso pela usurpação do Direito à Propriedade adquirida pelo trabalho).

À medida em que aprofundamos a razão e nos despimos do senso comum irrefletido, mais nos aproximamos à vida conforme o Direito Natural. O Conhecimento adquirido nessa prática alimenta o sentimento de compaixão, demonstrando que, assim como tenho o Direito Natural (que me confere família, propriedades e aquisições), os demais também teriam o mesmo Direito.

Entretanto, como dizia Nietzsche, são poucos os Super Homens. A maioria acaba por sufocar a “reta razão” adentrando em um estado de degenerescência. Nesse estado há um grande risco de que em algum momento direitos básicos sejam violados e o Estado de Guerra seja instaurado. Para evitar este colapso surge a necessidade da estruturação de uma sociedade civil que vise realizar o Direito Natural. Nesse ponto, o pensamento ciceroniano de governo misto em que todos os âmbitos tenham participação em um Juris Consensus, centralizado em um rei ou em uma aristocracia de personalidade nobre, parece ser mais eficiente que o aparente Consensus democrático defendido por Locke.

Mesmo que a Comunidade, na maior das boas intenções, procure realizar o Direito Natural, raramente teria o discernimento necessário para delegar o melhor. Pois nem sempre o interesse comum é o melhor para uma cidade. Já na Aristocracia, consigo vislumbrar a probabilidade de um senado constituído por homens mais interessados (engajados politicamente), justos e mais sábios dos que os constituintes de uma assembleia meramente popular. Provavelmente o Consensus de Locke não seja tão simplificado assim, porém Cícero parece ter pormenorizado melhor o papel da Política, convencendo-nos da possibilidade da construção de um Estado seguro, que mesmo em corrupção, estaria amparado por uma Constituição autorreparadora.

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