“A crítica à metafísica [feita por Locke] pela refutação da doutrina das ideias inatas é a contrapartida da constituição da consciência como ‘identidade pessoal’”.
Balibar
John Locke
O parágrafo acima, extraído do livro “Le traité lockien de l'identité”, diz respeito à visão do eu apresentada pelo pensador moderno John Locke na obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano”. Contrapondo-se à explicação inatista defendida por René Descartes nas obras “Meditações Metafísicas” e “Discurso do Método”; o filósofo britânico defende que o indivíduo se dá exclusivamente como fruto da continuidade da consciência, produzida pela relação entre uma ideia e a percepção da mesma.
Na Idade Antiga, o “conhecer” estava relacionado ao entendimento do que era uma “coisa”, ou seja, em desvendar a essência desta “coisa”. Na Idade Moderna, a “coisa” se transforma em “objeto” e interessa na medida em que este “objeto” se apresenta a um “sujeito”. Assim, o foco do fundamento do conhecimento passa a ser o “sujeito” e não mais a “coisa”, ganhando o “sujeito” privilégio na relação epistêmica.
Para Descartes o “sujeito” é oriundo do entendimento puro (ideias puras) e atividade apriorística (inata). Para o empirismo britânico o sujeito é formado pela experiência sensível. É em torno desse debate epistemológico, entre empirismo e inatismo, que o autor do “Ensaio sobre o Entendimento Humano” discursa, principalmente nos livros I e II.
“…meu propósito é inquirir da origem, da certeza e da extensão do conhecimento humano, das bases da crença, opinião e assentimento.”
“(…) considerar as faculdades de discernimento do homem enquanto ocupadas dos objetos que lhe dizem respeito.”
Livro I – Introdução
A posição inatista diz que há princípios que a alma traria consigo desde sua origem, segundo os princípios do entendimento puro (entendimentos que transcenderiam a experiência sensível, como a percepção de ideias negativas e independentes dos corpos). Por outro lado, a posição não inatista acredita ser possível mostrar a falsidade da posição inatista, demonstrando a possibilidade dos homens alcançarem pelo mero uso de suas faculdades, todo o seu conhecimento.
O Cogito parte da equivalência entre a certeza da minha existência e a certeza do meu pensamento (consciência como reflexão); “penso logo existo”, segunda meditação do “Discurso do Método”:
“A proposição eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou concebo”.
Do desdobramento desta equivalência entre a certeza do meu pensamento e a certeza da minha existência, Descartes conclui que o eu existe enquanto “coisa pensante” (Meditação 2.7). Ou seja, que modos de pensamento como a sensação, o querer, imaginação, compreensão, etc. apontam para a existência de um substrato, o “eu” (consciência como auto-referência).
A verdade da existência do eu como “coisa que pensa” é para Descartes o fundamento das ciências, pois carrega em si ao mesmo tempo a certeza de que “sou eu quem penso em mim” e de que “eu penso bem isto que eu penso”. Para o filósofo, não há realidade objetiva nas coisas em que os sentidos percebem como “fora de nós”, havendo somente realidade objetiva em ideias como extensão, forma, intensidade, cor, etc. que já estão presentes no ser desde sempre.
“Pelo nome de pensamento compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores.”
Segundas Respostas (Exposição Geométrica) - Descartes
“Não pode haver em nós nenhum pensamento do qual, no momento em que ele está em nós, não tenhamos dele um conhecimento atual. É por isso que não duvido que o espírito, assim que ele é infundido no corpo de uma criança, começa a pensar e que, desde então, sabe o que pensa, ainda que depois ele não se lembre do que pensou, porque seus pensamentos não permaneceram gravados em sua memória.”
Respostas às quartas objeções de Arnauld – Descartes
Enfim, como consequência do Cogito têm-se:
1) Não há pensamento sem outro pensamento;
2) A consciência é um pensamento entre outros;
3) A consciência (saber o que se pensa) é o operador que constantemente relaciona todos os pensamentos a um ego que os pode pensar e inscreve o sujeito entre os pensamentos (o eu está inscrito objetivamente entre os pensamentos);
4) Conhecimento imediato;
5) A alma não pode deixar de pensar dado que esta é a sua essência (“eu sou uma coisa pensante”).
No Cartesianismo, para cada pensamento fica evidente, claro e distinto que há uma coisa que pensa, o eu, a Identidade Pessoal. Porém, Locke, mesmo tendo aceito que todo pensamento é consciência do pensamento, atribui à afirmação de que “sou uma coisa pensante” um caráter exaustivo da tese das ideias inatas (apenas uma hipótese não fundamentada na experiência), e à afirmação de existir uma “alma que pense sempre” uma contradição da mesma tese – é sabido que algo em nós tem o poder de pensar, mas não há a certeza, além do que informa a experiência, de que essa substância pensa ou não sem interrupções.
“A percepção de ideias está para a alma como o movimento está para o corpo: não é sua essência, mas uma de suas operações. Portanto, mesmo supondo que o pensamento seja uma ação própria da alma, não é necessário supor que ela esteja sempre a pensar, que seja sempre ativa.”
Livro II – Capítulo I - Parágrafo 10
A partir dessas ressalvas o filósofo britânico inicia sua teoria epistemológica, afirmando que as ideias são construídas - vêm com o tempo - e que se o inatismo existisse, não conheceríamos homens que não assentassem às ideias inatas (e é fato que nem todos tem consciência delas). Logo, se as ideias inatas fossem verdadeiras, todos os homens as conheceriam, mesmo as crianças e tolos.
“Se, portanto, crianças e tolos tivessem uma alma ou mente com impressões [inatas], inevitavelmente as perceberiam, necessariamente as conheceriam e assentiriam à sua verdade.
[…]
É impossível que sejam impressas na mente verdades que uma pessoa nunca conheceu nem conhecerá: o homem pode viver e morrer na ignorância de muitas verdades que sua mente seria capaz de conhecer com certeza.
[…]
E dizer estar no entendimento e não ser entendido, estar na mente sem nunca ser percebido é o mesmo que dizer que uma coisa está e não está na mente e no entendimento”.
Livro I – Capítulo II - Parágrafo 5
No capítulo primeiro do livro 2, Locke apresenta sua hipótese para a fonte das ideias. Em sua crítica, mostra não ser necessário ter ideia inata, sendo preciso apenas observar os atos da mente – os fundamentos da experiência – determinantes para a construção do indivíduo.
A ideia, para o filósofo empirista, é aquilo de que a mente se ocupa e que existe nela mesma. Os objetos exteriores seriam os responsáveis pelas ideias de sensação e a atividade da mente, pelas ideias de reflexão. As ideias de sensação compreendem o paladar, visão, tato, olfato e audição. As ideias de reflexão a vontade, paixões, entendimento, imaginação, etc.
“O entendimento não tem, ao que me parece, a mais vaga noção de ideias que não receba de uma dessas fontes, objetos externos, que oferecem à mente ideias de qualidades sensíveis, cada uma delas diferentes percepções produzidas em nós, e a mente, que oferece ao entendimento ideias de suas próprias operações.
A exaustiva recensão de tais ideias, e de seus modos, combinações e relações, mostra que encerram a inteira provisão de nossas ideias, e que não há em nossa mente nada que não entre por uma dessas duas vias.”
Livro II – Capítulo I - Parágrafo 5
“Com o tempo, a mente reflete sobre suas operações em ideias de sensação e supre-se de um novo conjunto de ideias que chamo de ideias de reflexão. As origens de nosso conhecimento são, portanto, como eu já disse, impressões, nos sentidos, de objetos externos, extrínsecos à mente, e operações desta, procedentes de poderes intrínsecos a ela, e que, refletidas por ela mesmas, se tornam objetos de sua contemplação.”
Livro II – Capítulo I - Parágrafo 24
As ideias, segundo o pensador britânico, poderiam ser divididas em simples e complexas. Sendo que as ideias complexas seriam uma composição ou recomposição das ideias simples. As qualidades existiriam nas coisas, enquanto que as ideias seriam representações na consciência do que existe nas coisas. As qualidades estão misturadas nos objetos, enquanto nas ideias estariam separadas (capacidade de abstração da mente em separar a cor e a aspereza de um carpete, por exemplo, analisando as qualidades separadamente para só depois as conjugar).
Desta forma, as ideias de sensação e reflexão se relacionam no corpo e a mente; o corpo sente afecções de outros corpos, enquanto a mente, recebendo estes estímulos produz as ideias. A qualidade de um corpo (extensão, forma, movimento, repouso, solidez, etc.) são recebidos e classificados pela mente, que em resposta a esta interação produz a ideia.
Em suma, Locke advoga que a sensação de reflexão é quem define a clareza, distinção e a positividade das ideias e que há a anterioridade das ideias de sensação em relação às ideias de reflexão. Até nomes negativos como insípido, incolor e infinito seriam ideias positivas de alguma maneira, pois seriam reconhecidas pela ausência de qualidades (só sei o que é incolor porque conheço a cor, só sei o que infinito por que consigo extrapolar o finito, só sei o que é um triângulo porque vi vários e consigo abstrair suas similaridades, etc.). O fato de ver uma cor ou sentir uma textura, independentemente de suas origens, são positivas, pois eu as sinto e isso basta, diferentemente da concepção Cartesiana em que há o questionamento dos sentidos humanos como fonte confiáveis de conhecimento.
“Se acompanharmos a criança desde o nascimento e observarmos suas mudanças no decorrer do tempo, constataremos que ela fica cada vez mais desperta quanto mais ideias oferecem à mente os sentidos, que pensa cada vez mais quanto mais tenha matéria de pensar. Depois de algum tempo, começa a reconhecer objetos que, quanto mais familiares, mais duradouras impressões realizam. É assim que, gradualmente, como instância e efeito de retenção e da distinção de ideias transmitidas pelos sentidos, ela reconhece as pessoas de sua convivência diária e distingue-as de estranhos. Observamos assim o gradual aprimoramento da mente, seu avanço no exercício das faculdades de alargar, compor e abstrair ideias, de raciocinar e refletir sobre elas.”
Livro II – Parágrafo 22
Essa perspectiva introduzida por Locke acaba por redefinir alguns conceitos. Por exemplo, a Noção de Poder para o pensador ocorre através de mudanças de ideias perceptíveis, observáveis de ideias sensíveis (o “poder” do fogo altera o estado da matéria, tornando-a em cinzas). A Noção de Causalidade é entendida empiricamente por uma relação constatada entre um conjunto de ideias (o calor, como causa, representando a anterioridade, derrete a cera que, posteriormente, torna-se fluída). A Noção de substância não é definida como algo subjacente a realidade, mas tão somente advém de ideias que aparecem constantemente reunidas (o ouro, que sempre carrega características comum como solubilidade em água régia, maleabilidade, durabilidade, brilho, etc.).
Contrapondo-se ao conceito de Identidade exposto por Descartes, Locke no capítulo XXVII discute seu modelo empírico de Identidade. Esta Identidade consiste em considerarmos que uma coisa existe em tempo e em lugar determinados e que esta coisa será a mesma se perdurar ou subsistir com a mesma organização de sua constituição material até um outro tempo. Esta coisa pode ser qualquer corpo, inclusive, animais ou o próprio homem.
“Se vemos uma coisa, não importa qual seja, está em um lugar, num instante de tempo, temos a certeza de que, ela mesma está ali, e não uma outra coisa, que existe num outro lugar ao mesmo tempo, por mais que esta seja, em outros respeitos, igual a ela e dela indiscernível.”
Livro II – capítulo XXVII – parágrafo 01
Na sequência, define o que são corpos inanimados e vivos, caracterizando o homem como um corpo vivo dotado de inteligência (desconsidera que a definição de alma substancial seja necessária e suficiente para a caracterização da Identidade). A forma humana seria composta de ideias sensíveis, capacidade de operar sobre as ideias sensíveis e a consciência dessas operações.
Finalmente, no parágrafo 9, explicita com todas as letras como se dá a Identidade do Homem, como ser que pensa e sabe que pensa. Esta Identidade seria dividida em três aspectos: o lógico, o psicológico e o moral.
O lógico seria constituído pela forma corporal, segundo um princípio vital, mais o entendimento e a consciência de si (self). O psicológico se daria pela sensação de temporalidade interna; e o moral pela apropriação e responsabilização dos atos cometidos.
Assim, há a ideia, a percepção da ideia e o percipiente (itself) na consciência, ou seja, em cada experiência eu remeto a percepção a um polo que reconheço como eu, o sujeito. Para que haja a “mesmidade” de um ser racional, o eu deve se perceber como um mesmo eu a cada experiência e para isso, a consciência do pensar é imprescindível.
“O alcance da identidade de uma pessoa é igual à extensão retrospectiva da consciência que ela tem de uma ação ou de um pensamento; ela é agora tão ela mesma quanto era antes; e o eu mesmo presente, que agora reflete sobre uma ação passada, executou ele mesmo essa ação.”
Livro II – capítulo XXVII – parágrafo 09
Foi visto que a teoria do conhecimento de Locke também é baseada nas ideias, porém, admitindo a interação do indivíduo com corpos exteriores, enquanto Descartes acreditava que as ideias eram independentes dos corpos.
Locke, apesar de concordar com o filósofo francês de que “a alma não pode pensar sem saber o que pensa” (consciência como reflexão), não aceita a representação de uma “substância pensante” e, tampouco, que haja uma alma que “pense sempre”.
Não é preciso um plano transcendente para se explicar o que ocorre no plano dos fenômenos. Este suposto plano imaterial seria insustentável, ou seja, nada se poderia afirmar ou se comprovar sobre ele. Assim, a Hipótese Metafísica careceria de fundamentos e não seria necessária para explicar o que acontece no plano da experiência.
O eu do empirismo está em constante auto-reconhecimento na medida em que há a interação deste sujeito com sua realidade (objetos). O indivídiduo, segundo Locke, forma-se na aquisição de conhecimentos, a partir da experiência sensível e da reflexão sobre esta experiência realizada na temporalidade por um mesmo “eu”.
Enfim, a consciência, para Locke, não é apenas uma reflexão ou auto-referência, como apresentado por Descartes no conceito de “Identidade Pessoal” (identité à soi). Por isso, a ideia de substância pensante – Cogito Cartesiano – é refutada pela teoria Lockeana, sendo substituída por uma consciência formada através de ideias adquiridas pelas faculdades na experiência sensível e pela reflexão do sujeito desta experiência, em um processo de observação, descrição e classificação.
Em Locke, pode-se dizer que: começar a pensar é começar a perceber.
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