Não foi muito emocionante estudar um "filósofo" que confunde asceticismo com promiscuidade, mas tudo bem. Aí está o trabalho...
“A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna. A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em tomo, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos — de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação.”

O parágrafo acima, extraído do capítulo “O Corpo dos Condenados” do livro Vigiar e Punir, trata essencialmente de como se produz o sujeito moderno. Esta produção se dá através da ação de poderes disciplinadores; estes poderes agiriam, segundo Foucault, como moldadores da alma (interioridade) do indivíduo.
No antigo regime (até o século XVIII), o poder era exercido pelos soberanos fundamentalmente nos corpos dos condenados, com aplicação de violência pelo suplício, seguido, muitas vezes pela pena capital ou mero abandono em masmorras. As pessoas eram punidas simplesmente pelos seus atos criminosos; estas punições visavam unicamente retirar o indivíduo da convivência social e geralmente eram exercidas em público para que servisse de exemplo ao povo. Com o advento da modernidade e com a construção de saberes como consciência, humanidade, etc. esta forma de atuação pouco a pouco se modificou; o poder começou a reconsiderar o suplício, desconfiando de que o supliciado poderia gerar alguma identidade com a audiência.
Neste contexto, novas relações de poder foram brotando e mostraram-se úteis, o que configurou uma nova forma de punir. A partir de então, pelos conhecimentos adquiridos, por exemplo, nas áreas de psiquiatria, medicina e direito, não mais se considerou o crime como um ato isolado, o criminoso não foi mais visto simplesmente como um infrator, mas como um portador de uma história, de uma psique. Com efeito, a justiça passou a se preocupar com os porquês dos delitos, se o cidadão estava em seu juízo perfeito e quais seriam as condições com que o crime fora cometido. Uma vez identificados estes porquês, o Poder Disciplinar se manifestaria com a finalidade de reintegrar este indivíduo, passando a atuar na alma, privando a liberdade e, de modo distinto ao Poder Soberano, evitando provocar a dor física. Por este motivo, carrascos foram substituídos por técnicos e o teatro proporcionado pelas penalidades em praça pública, substituídos por castigos em locais reservados. Apesar de estas transformações históricas parecerem positivas, Foucault não as enxergava como um desenrolar progressista rumo ao melhor (evolução do humanismo), considerando-as apenas como um entrelaçar de novos poderes na história, que proporcionou à realidade novos conceitos para a produção de corpos disciplinados para fins específicos.
Os Poderes Disciplinares para o autor de Vigiar e Punir, diferentemente do Poder Soberano, produzem efeitos positivos, como a introjeção de valores e a formatação da alma, com o objetivo de dissuadir, se possível apenas com um olhar, e consequentemente promover a normalização do comportamento humano. Estes efeitos, que tiveram sua gênese no sistema carcerário, expandiram-se igualmente a outras instituições, abrangendo a escola, o hospital, o trabalho, etc. Nota-se que para o filósofo, o conceito de alma difere da concepção dos filósofos modernos; o sujeito disciplinado ou assujeitado, não é um ente dotado de liberdade, racionalidade ou consciência de si, pelo contrário, comporta-se, influenciado pelas práticas e discursos normalizadores, as denominadas sanções normalizadoras, que têm por finalidade domesticar e controlar os integrantes de uma sociedade. Estes dispositivos implantam um padrão de comportamento que tende a separar os normais dos anormais, criando uma aura de repugnância em torno da anormalidade.
Assim, a sociedade é perpassada por relações de poder que não são personificadas apenas na autoridade do Estado e que se solidificam a partir dos conhecimentos desenvolvidos na modernidade; formando a unidade indivisível chamada de “poder-saber” (que será mais aprofundada daqui a pouco), que tem se mostrado, até os dias de hoje, mais eficaz que a lógica de repressão de outrora. Enquanto o Poder Soberano é estritamente econômico (jurídico-político), baseado na filosofia política e na hierarquia Estado-Sociedade, os Poderes Disciplinares são disseminados na base da pirâmide social de forma a colonizar todo o restante, inclusive o topo. Ou seja, o próprio estado é transformado em seu interior pela ação disciplinar.
O Poder Disciplinar se destaca porque age no interior do sujeito; não é algo que vem de fora, que oprime e passa por cima do arbítrio, mas sim algo que lentamente permeia a psique humana, a dobrando e a moldando através de punição, vigilância, castigo, gratificação e coação, de acordo com os interesses deste poder (que geralmente estão ligados à utilização econômica), ditando modelos de comportamento que, mesmo em meio a alguma resistência, acabam sendo acatados pela maioria.
Pela sujeição disciplinar, partindo-se da premissa de que um corpo submisso é um corpo produtivo, são produzidos os “corpos dóceis”. Esta sujeição não é concebida pela violência ou a ideologia, pois a violência destrói o corpo e a ideologia ilude a alma, fazendo com que o indivíduo se identifique com algo que ele não é. O assujeitamento é um processo que não visa à aniquilação do indivíduo, mas a extração de benefícios econômicos e políticos do corpo e da alma deste indivíduo.
Estes poderes assujeitadores não surgem como uma estratégia de alguma pessoa ou classe. O que existe são diversas estratégias que vão se desenvolvendo, se tocando, se aperfeiçoando e de alguma forma se interconectando. Não há um poder único que domine ou use os demais, mas um tensionamento de poderes (vários poderes servindo a múltiplas finalidades, distinto do poder centralizador e dividido em classes sociais como fora pregado pelo marxismo). Para o autor do livro, o poder é algo impossível de se extinguir, o que pode ocorrer é a mudança de um tipo de poder para outro, da mesma forma com que a metamorfose suplício-prisão aconteceu. Contudo, isso não significa que o poder seja uma substância, propriedade ou coisa; os poderes são simplesmente relações inexoráveis numa sociedade.
As relações de poder que assujeitam o ser humano constituem a “máquina disciplinar”. Esta máquina realiza, apesar de aparentemente perfeita pela descrição do livro Vigiar e Punir, um processo contínuo e inacabado. A sujeição nunca é integral. Este fato não está implícito no livro, mas aparece nas entrelinhas; pois, quando se fala em disciplina, fica subentendida a existência da indisciplina. As sanções normalizadoras existem a fim de minimizar a indisciplina produzindo obediência e utilidade, características que interessam à própria máquina e a retroalimentam.
Foucault estabelece uma relação intrínseca entre poderes e saberes. Para ele, os poderes se desenvolvem na medida em que novos saberes vão sendo construídos. Foi através de saberes de otimização da produção que as fábricas modernas modificaram seus layouts e exerceram novas punições e gratificações aos funcionários; foi pelos novos saberes psiquiátricos que se determinou a distinção entre pessoas normais e as mentalmente limitadas; foi através da “evolução” de saberes educacionais que se desenvolveu a sala de aula, outorgando ao professor a autoridade de dissuadir os alunos apenas com um olhar; e, através dos novos conhecimentos da medicina, hospitais passaram a ser um local de constituição do saber médico e não mais um depósito de corpos. Analogamente a estes exemplos, o binômio poder-saber perpetuou-se em todos os segmentos, adaptando os espaços, infundindo novos conceitos disciplinares e submetendo indivíduos ao exame de “normalidade”. Este exame de “normalidade” acontece pela comparação de pessoas. De um lado temos as considerados normais e de outro as anormais; a sanção normalizadora produz o indivíduo moderno, revelando ao mesmo o quão longe este está da “normalidade”. Se antigamente tínhamos apenas os registros de pessoas influentes como os nobres, na modernidade os mecanismos de identificação abarcam a todos. Existem fichas com a história de todos: doentes, criminosos, trabalhadores, estudantes, etc. Este exame ainda mede indivíduos normais entre si e os e anormais entre si, como mecanismos de individualização; esta classificação, além de “corrigir” desvios, tem como objetivo gerar mais e mais saberes.
Enfim, o trecho estudado da obra Vigiar e Punir, nos revela a realidade de um mundo regido por Poderes Disciplinares, que “situam-se” no seio das instituições sociais (microfísica do poder) e que desempenham um papel fundamental na produção do sujeito. Assim, o sujeito é fruto de práticas disciplinares que o assujeitam. Estes poderes não são regidos por alguma pessoa ou algum interesse único, porém, são constituídos pelo conflito de múltiplos interesses em se produzir “corpos e almas dóceis”, ou seja, indivíduos massificados, induzidos a agir em prol da subsistência dos poderes aos quais se submetem. Não há espaço para se pensar em liberdade, autonomia ou auto constituição, como pensavam os filósofos antigos e os sábios do século XVIII, pois somos resultados de um teatro de relações entre os poderes. O poder não age exclusivamente no corpo, como no suplício, mas penetra-o, transforma-o e o fabrica de acordo com os interesses dos poderes vigentes. O “sistema” é uma máquina que traduz a energia do corpo que seria “gasta” em rebeldia em alguma utilidade. Todavia, não se deve entender que esta “máquina disciplinar” seja perfeita, pois o processo de assujeitamento não se define como a fabricação de um ser autômato; os corpos reagem, resistem e, em algum grau, devem estar engajados, dispostos a introjetar valores e a se submeter aos exames.
A filosofia de Foucault se diferencia e se destaca por não se importar com os porquês e por não se posicionar contra ou a favor das metamorfoses sofridas pelas formas de poder ao longo dos séculos. Basta ao autor procurar as singularidades, as astúcias da história; Foucault não segue a escola dos filósofos modernos, não abstrai a sociedade em classes, pois desta forma não seria possível descobrir quem as pessoas individualmente são.
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