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domingo, 11 de agosto de 2013

Introdução à Crítica do Direito de Hegel - Karl Marx

Este post contém uma análise minha de dois trechos da Introdução à Crítica do Direito de Hegel, artigo de Karl Marx publicado nos Anais franco-alemães durante sua juventude. O texto retrata apenas o pensamento do filósofo, não minha visão pessoal da realidade.


Introdução: (1), (2), (3), (4), (5)

A ideia de emancipação política já era tema de debate na Alemanha em meados 1820, após a publicação dos Princípios da filosofia de direito de Hegel. Os discípulos de Hegel, divididos entre esquerdistas, conhecidos também como “jovens-hegelianos” e direitistas os “velhos-hegelianos”, identificavam e debatiam os problemas daquela sociedade. O país vivia uma monarquia prussiana (um tipo de monarquia feudal) e os jovens-hegelianos buscavam a superação deste sistema para um Estado racional e livre, prefigurado na concepção hegeliana como uma monarquia constitucional. Essa posição, no entanto, seria abandonada em 1841, sendo substituída pelo ideal democrático, devido às desilusões dos esquerdistas com o reinado de Frederico Guilherme IV, e pela percepção de que a monarquia constitucional era um mero comprometimento entre a feudalidade e modernidade, ou seja, não representava a revolução desejada.

Karl Marx (1818-1883), em 1841, apesar de ser praticamente um jovem-hegeliano, começa a desenvolver sua própria visão da realidade alemã ao analisar criticamente e aprofundar a perspectiva de Hegel, sob forte influência da Revolução Francesa de 1789. Segundo Marx, em vez de apontar e recriminar insuficiências do pensamento, como faziam de forma geral os jovens-hegelianos, a verdadeira crítica devia desvendá-las; em vez de lutar contra seu objeto, ela devia ultrapassá-lo, demonstrá-lo em sua verdade, enfim, dialetizar.

Com esta motivação, em 1843, Marx publica nos Anais franco-alemães seu artigo intitulado “Para a crítica da filosofia de Hegel”, o gérmen da filosofia comunista marxista, um divisor de águas na obra marxiana, a transição de sua fase juvenil para a fase adulta e a consolidação dos pressupostos que continuariam a orientar a produção do seu pensamento até sua maturidade.

Em um primeiro momento, “Para a crítica da filosofia de Hegel” parte da visão invertida advogada por Hegel, entre ser e predicado; para isso baseia-se na resposta de Feuerbach (1804-1872), em que o pensamento é transformado em sujeito do mesmo modo que Deus o é na teologia: pela atribuição de ser à ideia abstrata e de abstração ao ser concreto. “O real na sua realidade efetiva, ou enquanto real, é o real enquanto objeto dos sentidos, é o sensível”. Assim, reconduzida à sua posição originária do verdadeiro sujeito, caberá ao próprio real a tarefa de guiar com segurança o pensamento rumo a sua realização e não à idealização, como defendia Hegel. É importante salientar que Marx não está criticando a lógica hegeliana, mas sim, os pressupostos em que esta é construída, pressupostos que elevam os princípios a uma esfera autônoma, separada e anterior ao próprio objeto sob análise.

O segundo momento da “Crítica da filosofia do direito de Hegel” trata basicamente do tema alienação política. Marx rediscute alguns conceitos, discordando da visão de Hegel que acreditava ser o Estado e a constituição produtos do espírito da nobreza de um povo. Para Marx, a constituição representa a separação do povo em relação a sua própria essência, sua “vontade genérica”. O “Estado real” é o próprio povo, sem a divisão entre Estado (constituição) e sociedade civil. Em suma, a constituição na ótica marxista deixou de ser a voz do povo, sendo objeto de apenas uma parte da população, não representando, como deveria, a “vontade geral” (que até então era ignorada ou julgada como uma voz de uma massa que não saiba o que queria). Esse será o sentido, na Crítica, do desenvolvimento da ideia de democracia, pensada em contraposição à defesa hegeliana da soberania do monarca. A Democracia agiria então como a verdadeira superação da oposição entre o Estado político e a sociedade civil.

Enfim, o mais marcante da obra é o tema da práxis, que na Introdução não apresenta-se ainda plenamente desenvolvida em comparação à produções marxistas como a "Sagrada Família", as "Teses sobre Feuerbach" e a "Ideologia Alemã". A práxis é expressa na doutrina pelo realce do vínculo essencial e indirimível entre a teoria e as práticas ou funções sociais, entre a postura crente ou filosófica e a política. A práxis marxista vai de encontro à visão contemporânea de Edward Said, que define o intelectual como um indivíduo que tem um papel público na sociedade, um vínculo público não atrelado a interesses de nenhuma ramo da sociedade, capaz de apresentar sua filosofia às classes menos elevadas e levantar questões embaraçosas contra dogmas e o senso comum. Visão bem diferente da do filósofo irrelevante culturalmente, que se preocupa apenas com verdades universais e não atenta para o conhecimento prático.

Desenvolvimento: (1), (2), (3)

Após essa breve contextualização, o texto se focará em dois trechos extraídos da "Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel”, como se segue:

1) “Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade...”

Este trecho está incluso entre os oito primeiros parágrafos da introdução, quando Marx discorre sobre a religião, assumindo que debater este assunto é o ponto de partida para se avançar no terreno da crítica. Na "Carta a Ruge" de setembro de 1843, Marx já afirmava que a “filosofia crítica” deveria atuar em dois campos: o teórico (religião, ciência) e o prático (política). Sua tarefa é a “reforma da consciência, não por meio de dogmas, mas mediante a análise da consciência mística, obscura para si mesma, seja esta sob forma religiosa ou política”. Vê-se, assim, que o tema da “autoconsciência” continua a ocupar, tal como em outros textos do filósofo, o mesmo lugar central no discurso marxiano.

O homem que procurou um Deus sobrenatural, mas no máximo, como disse Ludwig Feuerbach, encontrou o Summum Bonoum de um deus como consciência plena, deve, desconectar-se completamente das realidades paralelas e imaginárias e alocar-se no mundo. Assim, Marx advoga que o “homem é o mundo dos homens”, contrapondo a teoria da realidade proposta pela religião, a qual prega uma consciência invertida da realidade, ao alicerçar-se sobre o ponto de honra espiritualista, ao invés de materialista.

Assim, é preciso que o homem se enxergue no mundo e não, como diz o trecho, acocorado fora do mundo, e rompa com a fantasia que esconde a realidade, que segundo Marx era uma visão romântica e irreal pregada pela religião da época. Somente desta maneira seria possível a discussão da realidade, que no tempo em que o texto foi escrito, era a de exploração em jornadas de trabalho exageradas. Marx ainda vai mais além, suspeita do ideário religioso como uma ferramenta de alienação do sistema, o ópio do povo, ou seja, a dogmatização que mina qualquer tipo de resistência às ideologias presentes.

Ser “o mundo do homem” é situar-se na realidade, livrar-se da aparência sagrada, perceber-se como parte do “Estado Real” com senso crítico apurado para que a sociedade se organize e transforme seu dia a dia, sem consolações ilusórias. O parágrafo sete parece deixar claro o que seria “o mundo do homem”: “A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política.”

Em "Os Manuscritos" de 1844 o tema continua sendo desenvolvido, porém, com uma menor influência jovem-hegeliana, que defendia que a massa ignara necessitava de um Messias de sabedoria esclarecedora. O foco nesta obra são as análises econômicas da condição proletária, com a inclusão explícita do termo comunismo. Contudo, o tom feuerbachiano, que só é superado após "O Rei da Prússia e a reforma social", continua sendo aplicado à vida econômica com paralelos à religião: Deus torna-se a propriedade privada e o ateísmo se transforma em comunismo. Desta forma, o homem teria como prioridade livrar-se da alienação religiosa para que percebesse seu real estado, já que na visão de Marx, quanto mais coisas põe o homem em Deus, menos conserva dentro de si mesmo. O comunismo, então, teria início concomitante com o ateísmo.

Já no artigo "A Ideologia Alemã", Marx é ainda mais radical ao enfatizar a obrigatoriedade em se romper com qualquer conceito abstrato que pouco recomende a ação prática, para que a filosofia não recaísse no erro dos jovens-hegelianos, que interpretavam o mundo sem combatê-lo.

2) “...O sonho utópico da Alemanha não é a revolução radical, a emancipação humana universal, mas a revolução parcial, meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício...”

A emancipação a qual o trecho dois se refere é a emancipação do proletariado. O proletariado é a classe que, como resultado do sistema social vigente, herda a pobreza pelo não reconhecimento justo de seu trabalho. Desta forma, o proletariado tem a facilidade de reunir em si as mazelas de toda uma sociedade; carregando, assim, o sentimento universal e o modelo de sociedade do futuro (o polo positivo); em contraponto com a burguesia alemã (o polo negativo) que acomodou-se em seu status quo, comportando-se de modo muito diferente da subversiva burguesia francesa de 1789. Em suma, o positivo é representado pela classe que representa o sofrimento geral e que, para emancipar-se, provoca consequentemente a  emancipação geral.

Da moralidade alemã, julgada como um egoísmo modesto, e do sentimento moral da classe média mesquinha, segundo as palavras de Marx, não havia possibilidade de brotar qualquer representatividade ao interesse universal. Qualquer tentativa de emancipação por parte desses ramos só traria ainda mais barreiras entre as classes. Em comparação com a França, a Alemanha não deveria se contentar com uma revolução parcial, pois a renuncia a tudo seria condição obrigatória para a emancipação desejada.

A filosofia que deve atingir o proletariado (que Marx define como classe desprovida de qualquer humanidade) não é uma filosofia idealista ou aquela que procure simplesmente uma reforma ao sistema já existente, mas sim aquela que desperte na classe o seu verdadeiro estado de consciência, que é resumida por Marx pela seguinte frase: Nada sou e serei tudo. Ou seja, a Alemanha precisava de base material, de uma filosofia que representasse os reais interesses do povo e não apenas a realização do próprio pensamento. As ideologias até então faziam o país viver o ônus da modernidade e ao mesmo tempo, as desvantagens do ancien regime. Este ecletismo não ofereceu outra alternativa a Marx senão a de advogar pela revolução radical, um recomeço que rompesse totalmente com as bases do antigo regime.

No artigo "O Rei da Prússia e a reforma social", Marx, influenciado pela Revolta dos Tecelões e pela convivência com os comunistas franceses, aprofunda sua visão em relação à "Introdução à Crítica do Direito de Hegel", afirmando que somente no socialismo é que um povo filosófico pode encontrar a práxis adequada para sua emancipação geral e somente o proletariado pode assumir o papel ativo nessa libertação; aprofundamento que desmistificou a ideia de que o socialismo seria apenas um fruto teórico. "A Sagrada Família" apresenta um discurso diferente, sem mais a influência de Feuerbach sobre a mudança interior, defendendo a mudança das circunstâncias externas como prioridade, pois é esta que auto emancipa o cidadão (uma vez que o gérmen socialista se faz "naturalmente" presente em todos aqueles que estão à margem da sociedade). Esta dialética, contudo, é retomada e revista em trabalhos subsequentes, quando Marx admite que a mudança interior deve ocorrer simultaneamente às reformas exteriores. Mas o que vale ressaltar aqui é a evolução de como o comunismo se realizaria na Alemanha, não mais por um "relâmpago do pensamento" de um filósofo sobre a massa passiva, como defendida na Introdução, mas sim a filosofia agora como uma ferramenta a fim de ajudar o progresso do proletariado rumo à fundamentação teórica e coerência geral de sua revolução - a filosofia da práxis, conforme as "Teses sobre Feuerbach".

Em "A Ideologia Alemã", Marx associa a emancipação geral com o eliminar de qualquer ranço oriundo dos antigos valores, com a destruição de todo o ancien regime e com a superação de barreiras internas de consciência; pilares fundamentais para que uma sociedade comunista se concretize. Neste mesmo trabalho, Marx também admite a participação de outras classes que se sensibilizem com a causa proletária, inclusive de filósofos teóricos socialistas, que segundo o autor, poderiam fortalecer o movimento.

Conclusão: (1), (2), (3), (6)

Esta dissertação analisou dois trechos da obra “Introdução à Crítica do Direito de Hegel” de Karl Marx.
O primeiro parágrafo debatido abordou o tema religião. Ao refletir sobre a situação da Alemanha do século dezenove, Marx parte do princípio de que a crítica à religião é um dos pré requisitos para a solução dos problemas sociais vigentes. O alemão teria que assumir sua função social e desligar-se de temas espiritualistas e pensamentos idealistas, deixando de ser entorpecido pelo discurso judaico-cristão conformista (que pautava-se em abstrações que tentam descrever o mundo, mas nunca transformá-lo). O homem não é um ser acocorado fora do mundo e precisa encarar a realidade “nua e crua” sem as ilusões de eternidade e providência ensinadas pela religião. Nas palavras de Jean-Paul Sartre (1905-1980): “não é correndo atrás da imortalidade que nos tornaremos imortais: não seremos absolutos por ter refletido em nossas obras alguns princípios desencarnados, suficientemente vazios e nulos para passar de um século a outro, mas porque combatemos com paixão em nossa época, porque teremos gostado dela apaixonadamente e porque teremos aceitado perecer inteiros com ela.”

O segundo trecho abordou o tema emancipação geral, que só viria ocorrer se o proletariado alemão carregasse em si todas as mazelas sociais e representasse o sentimento universal. Marx que, na “Introdução à Crítica do Direito de Hegel” de 1843, acreditava que a emancipação se daria através do sábio que revela sua sabedoria a uma massa ignara; evolui seu pensamento pela convivência com os comunistas franceses e influenciado pela Revolta dos Tecelões, até que em “A Ideologia Alemã” de 1846, declara que não há dualidade entre o despertar filosófico e a prática socialista, alegando que ambas ocorrem simultaneamente (práxis), provocadas pelo sentimento do “Nada sou e serei tudo”. O proletariado, classe oprimida, a qual lhe foi censurada a própria humanidade, carrega em si o polo positivo da revolução, enquanto a burguesia opressora e privilegiada seria representada pelo polo negativo.

Enfim, Marx defende a revolução radical, ao concluir que para o caso alemão, nenhuma revolução parcial em qualquer base do acien regime poderia promover a revolução almejada. Ideais que foram sintetizados brilhantemente nas palavras de Sartre: “Já que o homem é uma totalidade, não basta apenas dar-lhe o direito de voto, sem tocar nos outros fatores que o constituem: é necessário que ele se liberte totalmente, isto é, que se faça outro, agindo tanto sobre sua constituição biológica quanto sobre seu condicionamento econômico, sobre seus complexos sexuais e sobre os dados políticos de sua situação”.

Bibliografia:

1. Marx, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução. São Paulo : Boitempo, 2005.
2. —. Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Covilhã : Universidade da Beira Interior, 2008.
3. Lowy, Michael. A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Petrópolis : Vozes, 2002.
4. Said, Edward W. Cultura e Política. São Paulo : Boitempo, 2003.
5. Feuerbach, Ludowig. A Essência do Cristianismo. Lisboa : Fundação Caloute Gulbenkian, 2001.
6. Sartre, Jean-Paul. Apresentação de "Les Temps Modernes". Revista de Estudos Marxistas. 1999, Vol. 8.

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