Estreando a sessão "Análise de Livro", hoje vou discorrer um pouco sobre a visão Agostiniana da maldade humana. A análise será restrita ao Livro 2, capítulos 4 ao 10 e não representa necessariamente minha opinião pessoal, mas sim, simplesmente, a visão do autor.

Capítulo 4: História de um furto
Neste capítulo Agostinho narra uma cena de sua adolescência, quando ele e alguns amigos, roubaram algumas peras de quintal alheio.
Um ato, aparentemente banal, mas que perturbava o espírito de Agostinho:
"Havia, próximo da nossa vinha, uma pereira, carregada de frutos nada sedutores, nem pela beleza nem pelo sabor. Alta noite, pois tínhamos o perverso costume de prolongar nas eiras os jogos até essas horas, eu com alguns jovens malvados fomos sacudi-la para lhe roubarmos os frutos. Tiramos grande quantidade, não para nos banquetearmos, se bem que provamos alguns, mas para os lançarmos aos porcos. Portanto, todo o nosso prazer consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo fato de o roubo ser ilícito."
Agostinho coloca sua angústia no fato de que não roubou as frutas para satisfazer sua fome ou por necessidade, porém, apenas pelo prazer do proibido.
"Diga-Vos ele agora o que buscava nesse sorve-douro, sendo eu mau desinteressadamente e não havendo outro motivo para a minha malícia senão a própria malícia. Era asquerosa e amei-a. Amei a minha morte, amei o meu pecado."
Assim, o capítulo 4 apresenta o problema do "gosto pela transgressão", o popular sentimento do "proibido é mais gostoso".
Capítulo 5: A causa ordinária do pecado
As motivações do pecado, de maneira geral, são explicadas por Agostinho:
"O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo atrativo. O prazer de conveniência que se sente no contato da carne influi vivamente. Cada um dos outros sentidos encontra nos corpos uma modalidade que lhes corresponde. Do mesmo modo a honra temporal e o poder de mandar e dominar encerram também um brilho, donde igualmente nasce a avidez de vingança."
Ou seja, a transgressão acontece porque as pessoas, tentadas pelos prazeres, buscam a satisfação ilícita de seus desejos, considerando-os como bens finais. Estas degenerações de comportamento, aparentemente diferentes do caso das peras, são motivadas por fatores externos e não pela maldade em si.
"Alguém matou um homem. E por quê? Ou porque lhe amava a esposa ou o campo, ou porque queria roubar para viver, ou porque temia que lhe tirasse alguma coisa, ou finalmente porque, injuriado, ardia no desejo de vingança. Quem acreditará que cometeu o homicídio só por deleite, se até Catilina, aquele homem louco e crudelíssimo, de quem se disse ser perverso e cruel sem razão, tinha um motivo: "o receio", diz o historiador, "de que o ócio lhe entorpecesse as mãos e o espírito"? Por que fim procedia ele assim? Evidentemente, para que, exercitado no crime, alcançasse, depois de tomada a cidade de Roma, as honras, o poder e as riquezas, libertando-se do medo das leis e da dificuldade em que o lançara a pobreza da herança e a consciência do crime. Logo, nem o mesmo Catilina amou seus crimes, mas aquilo por cujo fim os cometia."
Nem mesmo Catilina, o ser mais maldoso que até aquele tempo se tinha notícia, não cometeu o mal pelo mal, porém visava algum objetivo que considerava um "bem maior". É dessa forma que Agostinho termina o capítulo, enfatizando que, de maneira geral, a iniquidade é concebida para alguma finalidade.
Capítulo 6: A alegria do mal
"Que amei eu, miserável, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Não tinhas beleza alguma, pois eras um roubo! Mas és realmente alguma coisa, para eu me dirigir a ti? As peras que roubamos, sim, eram belas por serem criaturas vossas, ó mais belo de todos os seres, Criador de tudo, ó Deus tão bom, Deus soberano e meu verdadeiro Bem. Aqueles pomos eram belos; mas não foram esses que a minha alma depravada apeteceu, pois tinha abundância doutros melhores. Colhi-os simplesmente para roubar. Tanto é assim que, depois de colhidos, os lancei fora, banqueteando-me só na iniquidade com cujo gozo me alegrara. Se algum dos frutos entrou em minha boca, foi o meu crime que lhes deu o sabor."
Aqui, o autor ressalta e aprofunda o caso das peras. Mostra-se perturbado, pois seu ato parecia não seguir a lei do pecado que busca o "bem maior". Sua angústia manifestava-se por ter amado a transgressão em si e por ter furtado, aparentemente, por nenhuma finalidade. Entretanto, no decorrer do capítulo, há uma inflexão, Agostinho parece começar a compreender seu comportamento de adolescente.
"É assim que a alma peca, quando se aparta e busca fora de Vós o que não pode encontrar puro e transparente, a não ser regressando a Vós de novo. Imitam-Vos perversamente todos os que se afastam de Vós e contra Vós se levantam. Ainda assim, imitando-Vos deste modo, mostram que sois o Criador de toda a natureza, e que, por conseguinte, não há lugar para onde nos possamos afastar totalmente de Vós."
Portanto, a motivação do roubo das peras nada mais foi do que uma forma de imitar Deus; ou seja, viver o sentimento de liberdade e onipotência característicos de Deus.
"Que amei, portanto, naquele roubo e em que imitei o meu Senhor, ainda mesmo criminosa e perversamente? Tive ao menos o gosto de lutar pela fraude contra a vossa lei, já que o não podia pela força, a fim de imitar, sendo cativo, uma falsa liberdade, praticando impunemente, por uma tenebrosa semelhança de onipotência, o que me não era lícito?"
O pecado ainda, conforme o último parágrafo, funciona paradoxalmente como um elo de ligação entre o homem e Deus, pois, inconscientemente, atos pecaminosos são cometidos de forma a se imitar atributos da divindade.
"Eis-me 'aquele escravo que, fugindo a seu senhor, seguiu uma sombra!'"
Capítulo 7: O perdão
Este capítulo proclama que Deus é o único "médico" capaz de curar o homem desta tendência pecaminosa, através da graça e da misericórdia.
"Atribuo à vossa graça e à vossa misericórdia o terdes-me dissolvido, como gelo, os pecados. À vossa graça devo também o ter fugido do mal que não pratiquei. Oh! de que não era eu capaz, se até amei, sem recompensa, o pecado?!"
"Por Ele foi-lhe concedido não cair na mesma doença, ou antes, fez com que enfermasse com menos gravidade."
Capítulo 8: O prazer da cumplicidade
O autor indaga se cometeria o roubo se estivesse sozinho. A cumplicidade do ato pareceu potencializar o sabor da transgressão, talvez porque, não claramente explícito no texto, o transgressor necessite do reconhecimento de seus atos.
"Portanto, amei também no furto o consórcio daqueles com quem o cometi. Amei, por isso, mais alguma coisa do que o furto. Mas não: não amei mais nada, porque a cumplicidade nada vale."
"Se então amasse os pomos que furtei e com eles me apetecesse regalar, poderia tê-los roubado sozinho, se isso bastasse."
Capítulo 9: O riso da maldade
O riso foi a palavra usada para descrever que o roubo das peras foi uma afronta à expectativa alheia.
Agostinho, em seguida, tenta entender melhor o porquê não cometeria a ação se estivesse sozinho.
Primeiramente ele tenta se convencer que foi pelo simples fato de se divertir, rir. Admite, num primeiro momento, que o riso acontece mais facilmente em grupo, apesar de que, mesmo sozinho, rimos de acontecimentos corriqueiros do dia-a-dia.
"Qual o motivo por que me deleitava o não estar sozinho, quando cometia o furto? Seria porque ninguém facilmente se ri, quando está só? É certo que, sozinho, ninguém se ri facilmente. Mas, se alguma coisa demasiado ridícula acode aos sentidos ou à imaginação, o riso vence por vezes o homem, mesmo quando sozinho e sem ter ninguém presente. Ah! sozinho não praticaria tal ação. Se estivesse absolutamente só, não a faria."
Deste modo, reconhece Santo Agostinho a influência do ambiente na perpetração de crimes. O homem no meio dum grupo ou da multidão deixa-se facilmente sugestionar. É todo receptividade psicológica. A carga efetiva da coletividade galvaniza-o. Não reage como ser independente, mas como parte dum todo.
"Eis perante Vós, ó meu Deus, uma viva lembrança da minha alma. Sozinho, não cometeria aquele furto, em que me não aprazia o que roubava, mas o ato de roubar, porque, completamente só, não sentiria prazer em praticar o furto. Nem sequer o faria. Ó amizade tão inimiga, ó sedução impenetrável da mente, avidez de perpetrar o mal por brincadeira ou gracejo, ó apetite do dano alheio, sem lucro nenhum, sem paixão de vingança, mas só porque sentimos vergonha de não ser desavergonhados, quando nos dizem: 'Vamos, façamos'."
Capítulo 10: Quero a luz
Revelada a complexidade do debate suscitada por um "mero roubo de frutas", Santo Agostinho reage perante o pecado como um esteta perante a fealdade monstruosa e repugnante.
"Quem desembaraçará este nó tão enredado e emaranhado? É asqueroso; não o quero fitar nem ver"
Finalmente, prega o "gozo do Senhor", como o "bem perfeito"; como forma de perdão e recomeço, admitindo o quão afastado se encontrava da salvação em sua adolescência.
"Quem entra em Vós penetra "no gozo do seu Senhor", e não só não terá receio, mas também permanecerá soberanamente no bem perfeito. Na adolescência, afastei-me de Vós, andei errante, eu Deus, muito desviado do vosso apoio, tornando-me para mim mesmo uma região de fome."
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