Parece que a relação homem-animal, apesar de sempre ser citada na história da filosofia, foi resolvida de modo muito rápido, sendo mal problematizada ou tratada de modo antropocêntrico. Pelo menos no ponto de vista dos filósofos mais conhecidos. O mainstream do pensamento sempre colocou o homem – sua razão ou “seu logos” – em um pedestal como um ser superior, a exemplo do pensamento de Descartes, ou como um dominador, a “coroa da criação” (expressão emprestada da tradição teológica judaico-cristã). A metafísica sempre ocupou-se em postular abismos intransponíveis entre a humanidade e as bestas, atribuindo ao homo sapiens privilégios de eternidade, alma, raciocínio e percepção de mundo mais apurada.
Entretanto, alguns pensadores e até povos inteiros cursaram um outro
rumo; atraídos ou fascinados pelos animais, procuravam conhecê-los
mais a fundo e colocando-os em foco, descobriram que a relação
homem-animal é mais importante do que parece e que o tema não foi
“abafado” ou considerado esgotado à toa pela tradição.
Atribuir igualdade ontológica entre homens e feras traria graves
implicações à religião, aos hábitos e costumes de uma sociedade,
ou seja, promoveria uma reviravolta em conceitos já sedimentados e
que uma vez questionados nos obrigariam a repensar toda a nossa
história e nosso modo de vida. Esse artigo busca elencar alguns
pensadores e culturas, enfatizando filósofos como Montaigne,
Derrida, Bayle e Deleuze e, fugindo um pouco do metiê filosófico
acadêmico, compreender como os descendentes dos indo-arianos lidavam
com a relação homem-animal. A ideia geral é discorrer sobre
aqueles que resolveram lançar um olhar diferente, divergente da
perspectiva antropocêntrica do senso comum, sobre o tema da
animalidade.
O senso comum contemporâneo ocidental sobre as feras pode ser
sintetizado pelo pensamento cartesiano. René Descartes (1596-1650)
considerava os animais como simples máquinas, que reagiam diante das
situações de maneira instintivamente programada (autômata e
irracional); não possuíam alma, tampouco sentimentos, nem poderiam
se relacionar com Deus; restando-lhes o único objetivo de nos
servir. A semelhança entre humanos e não-humanos ocorreria apenas
quanto ao corpo (substância extensa). Entretanto, como os
não-humanos não são portadores de alma, não apresentariam
sensações ou consciência. Essa diferença entre ter alma ou não
era apontada por Descartes devido a linguagem e a consciência do eu
(atitude proposicional) que, segundo sua visão, somente os homens
apresentam. Até os homens mais brutos e insanos falam e produzem
enunciados (o que os evidencia como seres racionais), enquanto que,
por mais perfeito que um animal seja, este não tem a capacidade de
falar. Assim, a incomunicabilidade entre homens e animais se daria
porque os animais são privados de pensamento e, consequentemente de
linguagem, concepção que segundo o cartesianismo, construiu um
enorme distanciamento entre “racionais” e “irracionais”.
Mesmo alguns dos severos críticos de Descartes chegaram a conclusões
parecidas com a do francês, a exemplo do pensador contemporâneo
Heiddeger (1889-1976) que considerava-se acima do senso comum, porém
afirmava que os animais não tinham mundo – “um cachorro não
existe, apenas vive”, dizia. Até mesmo Spinoza (1632-1677), que
tinha uma concepção de realidade muito diferente de Descartes e o
cristianismo, escreveu em sua obra “Ética”:
“[...] a lei que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã
superstição e numa misericórdia feminil do que na são razão. O
princípio pelo qual se deve buscar o que nos é útil ensina,
indubitavelmente, a necessidade de nos unirmos aos homens e não aos
animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza humana.
Temos sobre eles o mesmo direito que eles têm sobre nós. Ou melhor,
como o direito de cada um se define por sua virtude ou potência, os
homens têm muito mais direito sobre os animais do que estes sobre os
homens. Não nego, entretanto, que os animais sintam. Nego que não
nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência,
utilizando-os como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja
mais útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus
afetos são diferentes, em natureza dos afetos humanos.” (Spinoza -
Ética)
Na contramão deste pensamento corrente, poder-se-ia citar Voltaire e
os modernos “menos influentes” Bayle e Montaigne e, ainda, os
contemporâneos Derrida e Deleuze, mesmo este último manifestando
não gostar de animais domesticados.
“Transfere agora teu raciocínio, por comparação, para aquele
cão que se perdeu do dono, que o procura por todos os lados soltando
latidos dolorosos, que entra em casa, agitado, inquieto, que sobe e
que desce, percorre as casas, uma após outras, até que acaba,
finalmente, por encontrar o dono de que tanto gosta no gabinete dele
e ali lhe manifesta a sua alegria pela ternura dos latidos, em
pródigas carícias. Algumas criaturas bárbaras, agarram nesse cão,
que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa,
dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas.
Encontras neles todos os órgãos das sensações que também existem
em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a natureza
colocou todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que
ele não possa sentir? Dispõe de nervos para manter-se impassível?
Que nem te ocorra tão impertinente contradição da natureza.”
(Voltaire – Dicionário Filosófico)
Montaigne (1533-1592) costumava dizer que poderia haver maior
distância entre um homem e outro homem, do que entre um homem e um
animal. Esta afirmação implica que, para o pensador, o animal não
era inferior ontologicamente e que os homens não são “tão
parecidos” entre si assim. Montaigne, inclusive, dizia que havia
diferenças entre um mesmo homem, evidenciadas quando este se depara
com suas diversas “facetas” e “contradições”. Este filósofo
rebatia o argumento cartesiano da linguagem como propriedade
exclusiva entre os humanos ao afirmar que os animais também tinham
linguagem (têm poder de resposta) e que até o silêncio pode
expressar uma linguagem. Não concebia também a ideia de
substancialidade do eu, ensinando que não há uma permanência de um
sujeito, seja este humano ou não, e que este é consequência dos
afetos. Enfim, não há sujeitos separados e a distinção entre os
indivíduos é interna; se dá pela maneira com que estes estão
vinculados aos afetos.
“Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se
sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar
sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem
comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo
indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de
Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VIII assumiu o papado como uma
raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. […] Não
somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde
vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da
instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto
raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um
aspecto ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de
mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas
as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. […] E
quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e
até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma
discordância. […] Somos todos constituídos de peças e pedaços
juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona
independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre
nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: 'Crede-me, não é
coisa fácil conduzir-se como um só homem'”. (Montaigne - Ensaios)
Derrida (1930-2004) em “Animal que Logo Sou”, faz uma reflexão
muito interessante que demonstrava sua “vergonha de ter vergonha”
ao ver-se nu diante de sua gata de estimação. Vergonha, pois o
animal não sente sua nudez porque ele já é nu, não “fica” nu,
como o humano. Com essa reflexão, Derrida mostra que há uma
profundidade muito grande na relação homem-animal e que o fato dos
bichos não terem linguagem, não os faz inferior a nós; pelo
contrário, a gata de Derrida nunca se sentirá perdida entre
dualismos como pudor/impudor, bem/mal, nem precisa responder sim ou
não. Em comum, homens e animais compartilham a finitude, porém
somente os humanos não se conformam com o término da vida.
Deleuze (1925-1995) na entrevista “Abecedário”, defende que os
animais produzem signos a todo o momento, como os animais de
território, que com sua urina querem comunicar que seu espaço deve
ser respeitado. Deleuze gostava de comparar o “animal à espreita”
com o comportamento de um verdadeiro filósofo. Um autêntico
pensador, segundo ele, deve filosofar sempre próximo à fronteira
homem-animal, não deve se afastar dessa tênue divisão, pois é
esse limite que não nos deixa esquecer que há “muito” dos
animais em nós e que há muito a aprender com eles.
Já Bayle (1647-1706) parece ser o negativo perfeito da visão
cartesiana sobre as bestas. Para ele, os animais exercem uma
suprarracionalidade (uma outra racionalidade) e se servem da razão
melhor do que os homens. Bayle acusava Descartes de desenvolver sua
filosofia apenas para reafirmar o dogma cristão da transcendência à
corrupção da matéria (finitude) e para justificar o homem frente a
exploração animal. Para Bayle, a filosofia cartesiana, pauta-se em
conceitos vantajosos para o cristianismo e para o status quo.
Atribuir alma ou igualdade ontológica entre homens e bichos
resultaria em uma completa subversão da sociedade como a conhecemos,
manchando de sangue a história humana, que sempre foi pautada em seu
senso de superioridade diante dos demais seres da natureza. Parece
que esta foi a desculpa de Descartes que quando questionado sobre sua
concepção filosófica a respeito dos animais, disse: “meu
objetivo não é ser cruel com os animais, mas valorizar o homem”.
Esta confissão feita na “Carta a More” (1649), propunha
justificar todo o proceder humano e garantir um suposto “compromisso
ético” da religião cristã. Ou seja, assujeitar os animais para
absolver os homens e a religião corrente.
A cultura judaico-cristã sempre visualizou os animais de forma
instrumental, como meros objetos. No livro de Gênesis (Bíblia),
Deus outorga a linguagem aos homens para nomear os seres e
dominá-los; e declara explicitamente que a função dos bichos é de
nos servir:
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves
dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o
réptil que se move sobre a terra.” (Gênesis 1:26)
Os hebreus utilizavam bodes e cordeiros em sacrifícios para remissão
de pecados:
“Um novilho, um carneiro, um cordeiro de um ano, para
holocausto;
Um bode para expiação do pecado;
E para sacrifício pacífico dois bois, cinco carneiros, cinco
bodes, cinco cordeiros de um ano; esta foi a oferta de Naassom, filho
de Aminadabe.” (Números 7:15-17)
Já no Novo Testamento, Jesus não pareceu se importar muito com o
fato de seus discípulos serem pescadores ou de servir peixe para a
multidão que o seguia:
“Disse-lhes Jesus: Trazei dos peixes que agora apanhastes.
Simão Pedro subiu e puxou a rede para terra, cheia de cento e
cinquenta e três grandes peixes e, sendo tantos, não se rompeu a
rede.
Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. E nenhum dos discípulos ousava
perguntar-lhe: Quem és tu? sabendo que era o Senhor.” (João
21:10-12)
“E ordenou-lhes que fizessem assentar a todos, em ranchos, sobre
a erva verde.
E assentaram-se repartidos de cem em cem, e de cinquenta em
cinquenta.
E, tomando ele os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos
ao céu, abençoou e partiu os pães, e deu-os aos seus discípulos
para que os pusessem diante deles. E repartiu os dois peixes por
todos.
E todos comeram, e ficaram fartos.” (Marcos 6:39-42)
Entender as bestas como robôs, nos moldes de Descartes, livraria o
cristianismo de uma série de problemas teológicos. Os animais não
pecaram, mas sofrem o mal mesmo assim (crueldade, fome, etc.), se
eles sentissem, pelo menos um pouco dessa maldade, ou seja, tivessem
“um pouco” de alma, como se explicaria a justiça de Deus? A alma
dos bichos, desprovida de razão ou linguagem, não seria capaz de
devolver, como pode fazer o homem, o amor ao criador ou o conhecer? O
fato de matarmos os outros seres com alma para consumo nos imputaria
crime? Para que a “Cidade de Deus” não caia em ruína, é melhor
considerar os não-humanos como autômatos; reconsiderar isso nessa
altura da história, como disse Pascal, tornaria a vida muito mais
incompreensível.
Já na cultura oriental há amostras de povos que enxergam os animais
de um modo totalmente diferente da perspectiva cristã/ocidental
comum. Mesmo estes cientes da impossibilidade de se viver sem levar
algum sofrimento e até a morte aos demais seres (quando colhemos
matamos insetos e plantas, quando caminhamos esmagamos formigas,
disputamos recursos com outros animais, etc.); os descendentes dos
aryas que se estabeleceram na Índia, por exemplo, procuravam não
elencar hierarquicamente as espécies, julgando-as igualmente
perfeitas, companheiras e merecedoras da vida, garantindo-lhes,
inclusive, direitos. Essa cultura ainda hoje permeia a região e foi
internalizada pelas religiões oriundas da cultura indo-ariana
(principalmente aquelas que não se deixaram influenciar e se
mantiveram ortodoxas). A literatura védica e budista, por exemplo,
ainda promove influência até os dias de hoje, ao condenar a caça,
abate e incentivando o vegetarianismo. As proibições em relação
ao carnivorismo são realmente abundantes.
“Aquele que compartilha de carne humana, de carne de um cavalo
ou de qualquer outro animal, que priva outros do leite pelo
assassínio das vacas, ó rei, se como um demônio ele não desistir
por outros meios, então, você não deve hesitar em cortar fora sua
cabeça.” (Rig-Veda 10.87.16)
O Código de Leis de Manu contém inúmeras passagens proibitivas ao
consumo de carne. Há uma coletânea imensa de trechos que tratam
sobre o tema nessa escritura, eis algumas amostras:
“Aquele que permite o assassínio de um animal, aquele que o
corta, aquele que o mata, aquele que o compra ou vende, aquele que o
cozinha, aquele que o serve e aquele que o come, todos deve ser
considerados como assassinos do animal. Não há nenhum pecador tão
grande que aquele que não cultua aos deuses, aos ancestrais e aquele
que busca robustecer sua própria carne pela carne de outros seres.”
(5.51-52)
“Aquele que machuca seres vivos com o desejo de dar prazer a si
mesmo, nunca encontrará felicidade nessa vida nem na próxima.”
(5.45)
No Mahabharata pode-se ler:
“O virtuoso Narada disse que o homem que se alegra em aumentar
sua própria carne comendo a carne de outras criaturas, se encontrará
com o desastre.” (115.12)
Vários sutras Budistas trazem proibições explícitas ao consumo de
carne e incentivam a compaixão a todos os seres. Os sutras são as
fontes principais dos ensinamentos budistas. No Brahmajala-Sutra
(Bonmon-Kyô), têm-se o seguinte verso:
“Um discípulo de Buda não deve comer carne deliberadamente.
Ele não deve comer carne de nenhum ser vivo. O comedor de carne
perde a semente da Grande Compaixão, corta a semente de sua
natureza búdica e faz com que todos os seres (animais e
transcendentais) o evitem. Aqueles que o fazem são culpados por
inumeráveis ofensas”.
O Lankavatara-Sutra, adverte:
“Fale-me Abençoado, Tathagata [Buda], Iluminado, sobre o mérito
e vício relativo à questão de comer carne; para que deste modo eu
e outros […] do presente e do futuro possamos ensinar o Dharma a
fim de fazer com que os seres abandonem seu ávido apego por carne,
seres que sob a influência da energia do hábito relativo às
existências carnívoras anseiam intensamente por comidas de carne.
Esses comedores de carne, ao abandonarem esse desejo, irão buscar o
Dharma [ensinamento Budista] e considerar todos os seres com amor,
como se fossem seus filhos, e terão grande júbilo e compaixão
pelos seres”.
E, ainda em outra parte do mesmo sutra:
“[…] onde quer que haja evolução de seres vivos, que as
pessoas divulguem com alegria o sentimento de equanimidade, e pensem
que todos os seres vivos devem ser amados como filhos únicos, que
todos deixem de comer carne! A carne de um cachorro, jumento, búfalo,
cavalo, homem ou qualquer outro ser, não é para ser comida”.
O budista procura cultivar em si a compaixão pelos seres. Realiza um
voto, chamado de “voto de Bodhisattva” em que compromete-se em
contemplar este sentimento. Diferentemente das conclusões do cogito,
em que há um sujeito com sua subjetividade e um objeto, que pode ser
um outro sujeito ou uma coisa; para o budista, por exemplo, não faz
sentido pensar que há um eu separado do todo, todos os seres são
parte de um organismo maior, interdependente do todo. Nesse sentido,
todos somos UM. Compaixão é colocar-se no lugar do outro, ou seja,
sofrer junto com o outro. Ora, nesta concepção, de alguma forma
somos realmente o outro. Nisso se fundamenta a ética budista. Agir
de modo indisciplinado, sem a menor preocupação com as
consequências dos atos cometidos não é compaixão, pois pode gerar
um sofrimento que poderia ser evitado (tanto a si mesmo quanto aos
demais). Assim, define-se o karma. O karma negativo provém do
provocar o sofrimento, este karma pode se perpetuar em suas
consequências por muito tempo, da mesma maneira com que bons karmas
podem frutificar e beneficiar os seres indefinidamente, por mais que
seja utópico pensar o mundo sem nenhum sofrimento. No Budismo não
há uma recompensa em se fazer o BEM - é o BEM pelo BEM, em
contraponto ao bem interessado do cristianismo - pelo simples motivo
de que, no fundo, não há um eu e não há um outro. O Bodhisattva
só descansa quando este mundo tiver se tornado a “Terra Pura”
(projeto de mundo ideal onde o sofrimento é reduzido ao máximo);
para isso, sua compaixão deve ser uma prática diária incessante,
capaz de impactar todos os seus costumes e atos cotidianos,
inclusive, seus hábitos alimentares. Aquele que pensa ter amor aos
seres e os consome não parece estar sendo sincero em seu voto de “se
colocar no lugar do outro”. Os Sutras do Lótus, do Nirvana,
Brahmajala, Lankavatara e muitos outros são claros a esse respeito,
ao categoricamente afirmar que o consumo de carne prejudica o
desenvolvimento da compaixão. Portanto, o Budista deve ser
impreterivelmente vegetariano.
Como é sabido, não foi a cultura arya que predominou. A
contemporaneidade pensa como Descartes e o cristianismo e isso se
reflete de forma muito evidente no nosso dia a dia. O consumo de
carne é visto como algo normal, um costume, e são poucos que se
colocam no lugar dos animais de abate. Como percebido por Derrida, os
dois últimos séculos apontaram transformações sem precedentes com
o aprimoramento técnico da pecuária e outros segmentos, associado
ao crescimento das populações; a manipulação e exploração dos
bichos para o bem-estar humano foram elevadas exponencialmente,
promovendo a maquinização e o assujeitamento do animal,
realizando-se, assim, o sonho de Descartes.
O homem faz “vistas grossas” ao genocídio animal. Isso
transparece na forma ocultada com que os “produtos” chegam às
nossas mesas. O hambúrguer, por exemplo, parece mesmo um produto,
não tem a cara do animal usado como sua matéria-prima. Este
genocídio também se reflete no desequilíbrio ambiental com a
invasão de habitats, extinção de espécies e superpopulação de
outras. Aos animais confinados resta uma sobrevida nada natural, o
tolhimento do direito à socialização e um mínimo de conforto e
dignidade. Muitos tentam contornar o problema com o argumento de que
a caça sempre fez parte da história; porém a caça nada tem a ver
com o modo artificial de confinamento. Outros usam o argumento do
“leão que come a zebra” sem dó, como se a natureza demonstrasse
ser comum consumir carne. Porém, para o leão, comer a zebra é
essencial para a própria sobrevivência, ou seja, ele não tem
escolha (caçar é sua natureza). À zebra, ao contrário dos animais
de abate para os humanos, não é restringida a vida em sociedade e
ela tem, ao menos, o direito de se refugiar do predador, direito não
concedido ao confinamento cruel e covarde dos abatedouros (animais
que nascem com o único propósito de nos servir), onde os bichos mal
podem se mexer e são impedidos de levar a cabo comportamentos tão
básicos como virar-se, coçar-se ou andar. Em suma, não
participamos da mesma cadeia alimentar natural da que o leão
participa, ao menos em um ponto de vista ético. Assim, poderíamos
classificar os procedimentos de abate como artificiais e cruéis em
comparação à caça dos predadores.
Outro ponto de vista interessante consiste em que o sistema
caçador/presa natural geralmente mantém o equilíbrio ambiental, ao
contrário dos efeitos da pecuária. Há estudos que mostram que há
mais de um boi por pessoa no Brasil; um indício de que o consumo de
carne para os humanos não tem nada de natural. Obviamente, esta
superpopulação de gado no país existe devido ao comércio deste
tipo de animal.
Falando em comércio, infelizmente os malefícios deste mercado não
são divulgados pelos principais meios de comunicação, por envolver
MUITO DINHEIRO. Estas consequências não se limitam ao prejuízo
ambiental (a pecuária é o setor que mais polui no mundo), mas
também aos diversos tipos de danos à saúde do próprio ser humano;
desde o aumento das taxas de doenças ligadas ao colesterol, à
dessensibilização das pessoas perante a morte.
Os bichos temem a morte e isso é claro. Quando levantamos um chinelo
para uma “simples” aranha em algum cômodo de nossas casas, ela
percebe e tenta fugir, lutando pela sobrevivência. Os crustáceos
dentro de uma panela com água fervente não sentem-se nada
confortáveis; não deixam de fazer pressão contra a tampa da
panela, tentando fugir até o último suspiro.
Enfim, não somos mais caçadores, somos coletores e, não vamos
morrer de fome se deixarmos de consumir os animais. Temos
inteligência o suficiente para nos alimentarmos de modo adequado e,
ao mesmo tempo, levarmos o menor sofrimento possível aos demais
seres. Mas esta tarefa requer autocontrole (não pensar apenas no
próprio bem-estar), ética e, acima de tudo, compaixão.
Repensar o Direito dos Animais implicaria na reversão do
assujeitamento dos animais. O direito, a ética e a política usuais
teriam que ser radicalmente transformadas, o mundo teria quer ser
“virado do avesso”. A ideia de fronteira entre homem e bestas
teria que ser desmistificada, pois é tensa e motiva o conflito.
São tantos os bichos que a própria designação a todos pela
expressão “animal” soa simplista e parece não corresponder a
diversidade infinita do universo.
Conclusão
Como dizia Derrida, não há como conciliar a filosofia cartesiana
com uma convivência não destrutiva entre homens e animais.
Descartes, ao perceber que a atribuição de mesmo valor ontológico
a homens e bichos produziria a ruptura de sua religião e do
pensamento comum de sua (e nossa) época, optou por formular uma
filosofia conformista para “valorizar o homem”, absolvê-lo do
crime de matar e comer um animal. É o que a confissão de Descartes
demonstra: para a manutenção do status quo humano é
necessário considerar os animais como máquinas, seres autômatos,
sem alma ou consciência de si. Essa visão nos dá o direito de
“usar e abusar” de todos os demais seres, uma vez que todas as
coisas existem para nos proporcionar bem-estar. Outros pensadores
chegaram a conclusões parecidas, mesmo alguns daqueles que se diziam
críticos de Descartes, a exemplo de Heidegger e Spinoza.
Por outro lado, pensadores como Derrida e Deleuze tentaram reduzir o
abismo metafísico que a tradição colocou entre homens e feras. O
abismo metafísico talvez tenha sido criado por uma ilusão humana
para que não nos percebêssemos como animais que também somos, ora,
temos muito em comum com eles, compartilhamos a finitude, as
necessidades biológicas e principalmente o sofrimento, que parece
ser a principal zona de contato entre “nós” e “eles”. Negar
a Deus é o mesmo que afirmar que os animais têm alma. A posição
de Descartes é muito boa para a religião cristã, conforme Bayle, e
mantém a ilusão de que a humanidade é dona do planeta.
A tradição indo-ariana já na Idade Antiga, não possuía uma visão
antropomórfica de mundo. Religiões como o budismo, contrapondo-se
ao cristianismo, enxergam os animais como seres que merecem o mesmo
respeito e direitos dos humanos. Não há uma hierarquia entre as
espécies, mas sim uma equanimidade. As religiões de origem arya que
mantiveram-se ortodoxas são vegetarianas.
Em nossos tempos os animais são considerados como produtos; com a
modernização da pecuária e a crescente população, foi necessário
cada vez mais mecanizar/automatizar produtos de origem animal. Estes
produtos chegam às nossas casas de forma camuflada, em um hambúrguer
em forma de “ficha” ou escondido dentro de cosméticos que para
serem aprovados em conselhos médicos testam seus ingredientes em
animais. Essa ocultação é para que em nenhum momento questionemos
suas origens. O senso comum é um anestésico tão poderoso que não
nos sentimos desconfortáveis ao comer carne, usar roupas de couro ou
irmos ao zoológico. É o triunfo do homem sobre as bestas.
Combater o senso comum é admitir que a história como a conhecemos,
do ponto de vista humano, é uma história de sangue, de uma raça
perversa, egoísta e insensível ao sofrimento. Seria considerar
nossa história apenas como uma ínfima parte da verdadeira História,
a História do todo e de todos os seres.
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