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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A Fronteira Homem-Animal sob o ponto de vista da Filosofia e da Religião


Parece que a relação homem-animal, apesar de sempre ser citada na história da filosofia, foi resolvida de modo muito rápido, sendo mal problematizada ou tratada de modo antropocêntrico. Pelo menos no ponto de vista dos filósofos mais conhecidos. O mainstream do pensamento sempre colocou o homem – sua razão ou “seu logos” – em um pedestal como um ser superior, a exemplo do pensamento de Descartes, ou como um dominador, a “coroa da criação” (expressão emprestada da tradição teológica judaico-cristã). A metafísica sempre ocupou-se em postular abismos intransponíveis entre a humanidade e as bestas, atribuindo ao homo sapiens privilégios de eternidade, alma, raciocínio e percepção de mundo mais apurada.
Entretanto, alguns pensadores e até povos inteiros cursaram um outro rumo; atraídos ou fascinados pelos animais, procuravam conhecê-los mais a fundo e colocando-os em foco, descobriram que a relação homem-animal é mais importante do que parece e que o tema não foi “abafado” ou considerado esgotado à toa pela tradição. Atribuir igualdade ontológica entre homens e feras traria graves implicações à religião, aos hábitos e costumes de uma sociedade, ou seja, promoveria uma reviravolta em conceitos já sedimentados e que uma vez questionados nos obrigariam a repensar toda a nossa história e nosso modo de vida. Esse artigo busca elencar alguns pensadores e culturas, enfatizando filósofos como Montaigne, Derrida, Bayle e Deleuze e, fugindo um pouco do metiê filosófico acadêmico, compreender como os descendentes dos indo-arianos lidavam com a relação homem-animal. A ideia geral é discorrer sobre aqueles que resolveram lançar um olhar diferente, divergente da perspectiva antropocêntrica do senso comum, sobre o tema da animalidade.

O senso comum contemporâneo ocidental sobre as feras pode ser sintetizado pelo pensamento cartesiano. René Descartes (1596-1650) considerava os animais como simples máquinas, que reagiam diante das situações de maneira instintivamente programada (autômata e irracional); não possuíam alma, tampouco sentimentos, nem poderiam se relacionar com Deus; restando-lhes o único objetivo de nos servir. A semelhança entre humanos e não-humanos ocorreria apenas quanto ao corpo (substância extensa). Entretanto, como os não-humanos não são portadores de alma, não apresentariam sensações ou consciência. Essa diferença entre ter alma ou não era apontada por Descartes devido a linguagem e a consciência do eu (atitude proposicional) que, segundo sua visão, somente os homens apresentam. Até os homens mais brutos e insanos falam e produzem enunciados (o que os evidencia como seres racionais), enquanto que, por mais perfeito que um animal seja, este não tem a capacidade de falar. Assim, a incomunicabilidade entre homens e animais se daria porque os animais são privados de pensamento e, consequentemente de linguagem, concepção que segundo o cartesianismo, construiu um enorme distanciamento entre “racionais” e “irracionais”.
Mesmo alguns dos severos críticos de Descartes chegaram a conclusões parecidas com a do francês, a exemplo do pensador contemporâneo Heiddeger (1889-1976) que considerava-se acima do senso comum, porém afirmava que os animais não tinham mundo – “um cachorro não existe, apenas vive”, dizia. Até mesmo Spinoza (1632-1677), que tinha uma concepção de realidade muito diferente de Descartes e o cristianismo, escreveu em sua obra “Ética”:

[...] a lei que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã superstição e numa misericórdia feminil do que na são razão. O princípio pelo qual se deve buscar o que nos é útil ensina, indubitavelmente, a necessidade de nos unirmos aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza humana. Temos sobre eles o mesmo direito que eles têm sobre nós. Ou melhor, como o direito de cada um se define por sua virtude ou potência, os homens têm muito mais direito sobre os animais do que estes sobre os homens. Não nego, entretanto, que os animais sintam. Nego que não nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência, utilizando-os como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus afetos são diferentes, em natureza dos afetos humanos.” (Spinoza - Ética)

Na contramão deste pensamento corrente, poder-se-ia citar Voltaire e os modernos “menos influentes” Bayle e Montaigne e, ainda, os contemporâneos Derrida e Deleuze, mesmo este último manifestando não gostar de animais domesticados.

Transfere agora teu raciocínio, por comparação, para aquele cão que se perdeu do dono, que o procura por todos os lados soltando latidos dolorosos, que entra em casa, agitado, inquieto, que sobe e que desce, percorre as casas, uma após outras, até que acaba, finalmente, por encontrar o dono de que tanto gosta no gabinete dele e ali lhe manifesta a sua alegria pela ternura dos latidos, em pródigas carícias. Algumas criaturas bárbaras, agarram nesse cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas. Encontras neles todos os órgãos das sensações que também existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a natureza colocou todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que ele não possa sentir? Dispõe de nervos para manter-se impassível? Que nem te ocorra tão impertinente contradição da natureza.” (Voltaire – Dicionário Filosófico)


Montaigne (1533-1592) costumava dizer que poderia haver maior distância entre um homem e outro homem, do que entre um homem e um animal. Esta afirmação implica que, para o pensador, o animal não era inferior ontologicamente e que os homens não são “tão parecidos” entre si assim. Montaigne, inclusive, dizia que havia diferenças entre um mesmo homem, evidenciadas quando este se depara com suas diversas “facetas” e “contradições”. Este filósofo rebatia o argumento cartesiano da linguagem como propriedade exclusiva entre os humanos ao afirmar que os animais também tinham linguagem (têm poder de resposta) e que até o silêncio pode expressar uma linguagem. Não concebia também a ideia de substancialidade do eu, ensinando que não há uma permanência de um sujeito, seja este humano ou não, e que este é consequência dos afetos. Enfim, não há sujeitos separados e a distinção entre os indivíduos é interna; se dá pela maneira com que estes estão vinculados aos afetos.

Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VIII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. […] Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. […] E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. […] Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: 'Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem'”. (Montaigne - Ensaios)

Derrida (1930-2004) em “Animal que Logo Sou”, faz uma reflexão muito interessante que demonstrava sua “vergonha de ter vergonha” ao ver-se nu diante de sua gata de estimação. Vergonha, pois o animal não sente sua nudez porque ele já é nu, não “fica” nu, como o humano. Com essa reflexão, Derrida mostra que há uma profundidade muito grande na relação homem-animal e que o fato dos bichos não terem linguagem, não os faz inferior a nós; pelo contrário, a gata de Derrida nunca se sentirá perdida entre dualismos como pudor/impudor, bem/mal, nem precisa responder sim ou não. Em comum, homens e animais compartilham a finitude, porém somente os humanos não se conformam com o término da vida.
Deleuze (1925-1995) na entrevista “Abecedário”, defende que os animais produzem signos a todo o momento, como os animais de território, que com sua urina querem comunicar que seu espaço deve ser respeitado. Deleuze gostava de comparar o “animal à espreita” com o comportamento de um verdadeiro filósofo. Um autêntico pensador, segundo ele, deve filosofar sempre próximo à fronteira homem-animal, não deve se afastar dessa tênue divisão, pois é esse limite que não nos deixa esquecer que há “muito” dos animais em nós e que há muito a aprender com eles.
Já Bayle (1647-1706) parece ser o negativo perfeito da visão cartesiana sobre as bestas. Para ele, os animais exercem uma suprarracionalidade (uma outra racionalidade) e se servem da razão melhor do que os homens. Bayle acusava Descartes de desenvolver sua filosofia apenas para reafirmar o dogma cristão da transcendência à corrupção da matéria (finitude) e para justificar o homem frente a exploração animal. Para Bayle, a filosofia cartesiana, pauta-se em conceitos vantajosos para o cristianismo e para o status quo. Atribuir alma ou igualdade ontológica entre homens e bichos resultaria em uma completa subversão da sociedade como a conhecemos, manchando de sangue a história humana, que sempre foi pautada em seu senso de superioridade diante dos demais seres da natureza. Parece que esta foi a desculpa de Descartes que quando questionado sobre sua concepção filosófica a respeito dos animais, disse: “meu objetivo não é ser cruel com os animais, mas valorizar o homem”. Esta confissão feita na “Carta a More” (1649), propunha justificar todo o proceder humano e garantir um suposto “compromisso ético” da religião cristã. Ou seja, assujeitar os animais para absolver os homens e a religião corrente.
A cultura judaico-cristã sempre visualizou os animais de forma instrumental, como meros objetos. No livro de Gênesis (Bíblia), Deus outorga a linguagem aos homens para nomear os seres e dominá-los; e declara explicitamente que a função dos bichos é de nos servir:


E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.” (Gênesis 1:26)

Os hebreus utilizavam bodes e cordeiros em sacrifícios para remissão de pecados:

Um novilho, um carneiro, um cordeiro de um ano, para holocausto;
Um bode para expiação do pecado;
E para sacrifício pacífico dois bois, cinco carneiros, cinco bodes, cinco cordeiros de um ano; esta foi a oferta de Naassom, filho de Aminadabe.” (Números 7:15-17)

Já no Novo Testamento, Jesus não pareceu se importar muito com o fato de seus discípulos serem pescadores ou de servir peixe para a multidão que o seguia:

Disse-lhes Jesus: Trazei dos peixes que agora apanhastes.
Simão Pedro subiu e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes e, sendo tantos, não se rompeu a rede.
Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. E nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe: Quem és tu? sabendo que era o Senhor.” (João 21:10-12)

E ordenou-lhes que fizessem assentar a todos, em ranchos, sobre a erva verde.
E assentaram-se repartidos de cem em cem, e de cinquenta em cinquenta.
E, tomando ele os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães, e deu-os aos seus discípulos para que os pusessem diante deles. E repartiu os dois peixes por todos.
E todos comeram, e ficaram fartos.” (Marcos 6:39-42)

Entender as bestas como robôs, nos moldes de Descartes, livraria o cristianismo de uma série de problemas teológicos. Os animais não pecaram, mas sofrem o mal mesmo assim (crueldade, fome, etc.), se eles sentissem, pelo menos um pouco dessa maldade, ou seja, tivessem “um pouco” de alma, como se explicaria a justiça de Deus? A alma dos bichos, desprovida de razão ou linguagem, não seria capaz de devolver, como pode fazer o homem, o amor ao criador ou o conhecer? O fato de matarmos os outros seres com alma para consumo nos imputaria crime? Para que a “Cidade de Deus” não caia em ruína, é melhor considerar os não-humanos como autômatos; reconsiderar isso nessa altura da história, como disse Pascal, tornaria a vida muito mais incompreensível.
Já na cultura oriental há amostras de povos que enxergam os animais de um modo totalmente diferente da perspectiva cristã/ocidental comum. Mesmo estes cientes da impossibilidade de se viver sem levar algum sofrimento e até a morte aos demais seres (quando colhemos matamos insetos e plantas, quando caminhamos esmagamos formigas, disputamos recursos com outros animais, etc.); os descendentes dos aryas que se estabeleceram na Índia, por exemplo, procuravam não elencar hierarquicamente as espécies, julgando-as igualmente perfeitas, companheiras e merecedoras da vida, garantindo-lhes, inclusive, direitos. Essa cultura ainda hoje permeia a região e foi internalizada pelas religiões oriundas da cultura indo-ariana (principalmente aquelas que não se deixaram influenciar e se mantiveram ortodoxas). A literatura védica e budista, por exemplo, ainda promove influência até os dias de hoje, ao condenar a caça, abate e incentivando o vegetarianismo. As proibições em relação ao carnivorismo são realmente abundantes.

Aquele que compartilha de carne humana, de carne de um cavalo ou de qualquer outro animal, que priva outros do leite pelo assassínio das vacas, ó rei, se como um demônio ele não desistir por outros meios, então, você não deve hesitar em cortar fora sua cabeça.” (Rig-Veda 10.87.16)

O Código de Leis de Manu contém inúmeras passagens proibitivas ao consumo de carne. Há uma coletânea imensa de trechos que tratam sobre o tema nessa escritura, eis algumas amostras:

Aquele que permite o assassínio de um animal, aquele que o corta, aquele que o mata, aquele que o compra ou vende, aquele que o cozinha, aquele que o serve e aquele que o come, todos deve ser considerados como assassinos do animal. Não há nenhum pecador tão grande que aquele que não cultua aos deuses, aos ancestrais e aquele que busca robustecer sua própria carne pela carne de outros seres.” (5.51-52)

Aquele que machuca seres vivos com o desejo de dar prazer a si mesmo, nunca encontrará felicidade nessa vida nem na próxima.” (5.45)

No Mahabharata pode-se ler:

O virtuoso Narada disse que o homem que se alegra em aumentar sua própria carne comendo a carne de outras criaturas, se encontrará com o desastre.” (115.12)

Vários sutras Budistas trazem proibições explícitas ao consumo de carne e incentivam a compaixão a todos os seres. Os sutras são as fontes principais dos ensinamentos budistas. No Brahmajala-Sutra (Bonmon-Kyô), têm-se o seguinte verso:

Um discípulo de Buda não deve comer carne deliberadamente. Ele não deve comer carne de nenhum ser vivo. O comedor de carne perde a semente da Grande Compaixão, corta a semente de sua natureza búdica e faz com que todos os seres (animais e transcendentais) o evitem. Aqueles que o fazem são culpados por inumeráveis ofensas”.

O Lankavatara-Sutra, adverte:

Fale-me Abençoado, Tathagata [Buda], Iluminado, sobre o mérito e vício relativo à questão de comer carne; para que deste modo eu e outros […] do presente e do futuro possamos ensinar o Dharma a fim de fazer com que os seres abandonem seu ávido apego por carne, seres que sob a influência da energia do hábito relativo às existências carnívoras anseiam intensamente por comidas de carne. Esses comedores de carne, ao abandonarem esse desejo, irão buscar o Dharma [ensinamento Budista] e considerar todos os seres com amor, como se fossem seus filhos, e terão grande júbilo e compaixão pelos seres”.

E, ainda em outra parte do mesmo sutra:

[…] onde quer que haja evolução de seres vivos, que as pessoas divulguem com alegria o sentimento de equanimidade, e pensem que todos os seres vivos devem ser amados como filhos únicos, que todos deixem de comer carne! A carne de um cachorro, jumento, búfalo, cavalo, homem ou qualquer outro ser, não é para ser comida”.


O budista procura cultivar em si a compaixão pelos seres. Realiza um voto, chamado de “voto de Bodhisattva” em que compromete-se em contemplar este sentimento. Diferentemente das conclusões do cogito, em que há um sujeito com sua subjetividade e um objeto, que pode ser um outro sujeito ou uma coisa; para o budista, por exemplo, não faz sentido pensar que há um eu separado do todo, todos os seres são parte de um organismo maior, interdependente do todo. Nesse sentido, todos somos UM. Compaixão é colocar-se no lugar do outro, ou seja, sofrer junto com o outro. Ora, nesta concepção, de alguma forma somos realmente o outro. Nisso se fundamenta a ética budista. Agir de modo indisciplinado, sem a menor preocupação com as consequências dos atos cometidos não é compaixão, pois pode gerar um sofrimento que poderia ser evitado (tanto a si mesmo quanto aos demais). Assim, define-se o karma. O karma negativo provém do provocar o sofrimento, este karma pode se perpetuar em suas consequências por muito tempo, da mesma maneira com que bons karmas podem frutificar e beneficiar os seres indefinidamente, por mais que seja utópico pensar o mundo sem nenhum sofrimento. No Budismo não há uma recompensa em se fazer o BEM - é o BEM pelo BEM, em contraponto ao bem interessado do cristianismo - pelo simples motivo de que, no fundo, não há um eu e não há um outro. O Bodhisattva só descansa quando este mundo tiver se tornado a “Terra Pura” (projeto de mundo ideal onde o sofrimento é reduzido ao máximo); para isso, sua compaixão deve ser uma prática diária incessante, capaz de impactar todos os seus costumes e atos cotidianos, inclusive, seus hábitos alimentares. Aquele que pensa ter amor aos seres e os consome não parece estar sendo sincero em seu voto de “se colocar no lugar do outro”. Os Sutras do Lótus, do Nirvana, Brahmajala, Lankavatara e muitos outros são claros a esse respeito, ao categoricamente afirmar que o consumo de carne prejudica o desenvolvimento da compaixão. Portanto, o Budista deve ser impreterivelmente vegetariano.

Como é sabido, não foi a cultura arya que predominou. A contemporaneidade pensa como Descartes e o cristianismo e isso se reflete de forma muito evidente no nosso dia a dia. O consumo de carne é visto como algo normal, um costume, e são poucos que se colocam no lugar dos animais de abate. Como percebido por Derrida, os dois últimos séculos apontaram transformações sem precedentes com o aprimoramento técnico da pecuária e outros segmentos, associado ao crescimento das populações; a manipulação e exploração dos bichos para o bem-estar humano foram elevadas exponencialmente, promovendo a maquinização e o assujeitamento do animal, realizando-se, assim, o sonho de Descartes.
O homem faz “vistas grossas” ao genocídio animal. Isso transparece na forma ocultada com que os “produtos” chegam às nossas mesas. O hambúrguer, por exemplo, parece mesmo um produto, não tem a cara do animal usado como sua matéria-prima. Este genocídio também se reflete no desequilíbrio ambiental com a invasão de habitats, extinção de espécies e superpopulação de outras. Aos animais confinados resta uma sobrevida nada natural, o tolhimento do direito à socialização e um mínimo de conforto e dignidade. Muitos tentam contornar o problema com o argumento de que a caça sempre fez parte da história; porém a caça nada tem a ver com o modo artificial de confinamento. Outros usam o argumento do “leão que come a zebra” sem dó, como se a natureza demonstrasse ser comum consumir carne. Porém, para o leão, comer a zebra é essencial para a própria sobrevivência, ou seja, ele não tem escolha (caçar é sua natureza). À zebra, ao contrário dos animais de abate para os humanos, não é restringida a vida em sociedade e ela tem, ao menos, o direito de se refugiar do predador, direito não concedido ao confinamento cruel e covarde dos abatedouros (animais que nascem com o único propósito de nos servir), onde os bichos mal podem se mexer e são impedidos de levar a cabo comportamentos tão básicos como virar-se, coçar-se ou andar. Em suma, não participamos da mesma cadeia alimentar natural da que o leão participa, ao menos em um ponto de vista ético. Assim, poderíamos classificar os procedimentos de abate como artificiais e cruéis em comparação à caça dos predadores.
Outro ponto de vista interessante consiste em que o sistema caçador/presa natural geralmente mantém o equilíbrio ambiental, ao contrário dos efeitos da pecuária. Há estudos que mostram que há mais de um boi por pessoa no Brasil; um indício de que o consumo de carne para os humanos não tem nada de natural. Obviamente, esta superpopulação de gado no país existe devido ao comércio deste tipo de animal.
Falando em comércio, infelizmente os malefícios deste mercado não são divulgados pelos principais meios de comunicação, por envolver MUITO DINHEIRO. Estas consequências não se limitam ao prejuízo ambiental (a pecuária é o setor que mais polui no mundo), mas também aos diversos tipos de danos à saúde do próprio ser humano; desde o aumento das taxas de doenças ligadas ao colesterol, à dessensibilização das pessoas perante a morte.
Os bichos temem a morte e isso é claro. Quando levantamos um chinelo para uma “simples” aranha em algum cômodo de nossas casas, ela percebe e tenta fugir, lutando pela sobrevivência. Os crustáceos dentro de uma panela com água fervente não sentem-se nada confortáveis; não deixam de fazer pressão contra a tampa da panela, tentando fugir até o último suspiro.
Enfim, não somos mais caçadores, somos coletores e, não vamos morrer de fome se deixarmos de consumir os animais. Temos inteligência o suficiente para nos alimentarmos de modo adequado e, ao mesmo tempo, levarmos o menor sofrimento possível aos demais seres. Mas esta tarefa requer autocontrole (não pensar apenas no próprio bem-estar), ética e, acima de tudo, compaixão.
Repensar o Direito dos Animais implicaria na reversão do assujeitamento dos animais. O direito, a ética e a política usuais teriam que ser radicalmente transformadas, o mundo teria quer ser “virado do avesso”. A ideia de fronteira entre homem e bestas teria que ser desmistificada, pois é tensa e motiva o conflito. São tantos os bichos que a própria designação a todos pela expressão “animal” soa simplista e parece não corresponder a diversidade infinita do universo.


Conclusão

Como dizia Derrida, não há como conciliar a filosofia cartesiana com uma convivência não destrutiva entre homens e animais. Descartes, ao perceber que a atribuição de mesmo valor ontológico a homens e bichos produziria a ruptura de sua religião e do pensamento comum de sua (e nossa) época, optou por formular uma filosofia conformista para “valorizar o homem”, absolvê-lo do crime de matar e comer um animal. É o que a confissão de Descartes demonstra: para a manutenção do status quo humano é necessário considerar os animais como máquinas, seres autômatos, sem alma ou consciência de si. Essa visão nos dá o direito de “usar e abusar” de todos os demais seres, uma vez que todas as coisas existem para nos proporcionar bem-estar. Outros pensadores chegaram a conclusões parecidas, mesmo alguns daqueles que se diziam críticos de Descartes, a exemplo de Heidegger e Spinoza.
Por outro lado, pensadores como Derrida e Deleuze tentaram reduzir o abismo metafísico que a tradição colocou entre homens e feras. O abismo metafísico talvez tenha sido criado por uma ilusão humana para que não nos percebêssemos como animais que também somos, ora, temos muito em comum com eles, compartilhamos a finitude, as necessidades biológicas e principalmente o sofrimento, que parece ser a principal zona de contato entre “nós” e “eles”. Negar a Deus é o mesmo que afirmar que os animais têm alma. A posição de Descartes é muito boa para a religião cristã, conforme Bayle, e mantém a ilusão de que a humanidade é dona do planeta.
A tradição indo-ariana já na Idade Antiga, não possuía uma visão antropomórfica de mundo. Religiões como o budismo, contrapondo-se ao cristianismo, enxergam os animais como seres que merecem o mesmo respeito e direitos dos humanos. Não há uma hierarquia entre as espécies, mas sim uma equanimidade. As religiões de origem arya que mantiveram-se ortodoxas são vegetarianas.
Em nossos tempos os animais são considerados como produtos; com a modernização da pecuária e a crescente população, foi necessário cada vez mais mecanizar/automatizar produtos de origem animal. Estes produtos chegam às nossas casas de forma camuflada, em um hambúrguer em forma de “ficha” ou escondido dentro de cosméticos que para serem aprovados em conselhos médicos testam seus ingredientes em animais. Essa ocultação é para que em nenhum momento questionemos suas origens. O senso comum é um anestésico tão poderoso que não nos sentimos desconfortáveis ao comer carne, usar roupas de couro ou irmos ao zoológico. É o triunfo do homem sobre as bestas.
Combater o senso comum é admitir que a história como a conhecemos, do ponto de vista humano, é uma história de sangue, de uma raça perversa, egoísta e insensível ao sofrimento. Seria considerar nossa história apenas como uma ínfima parte da verdadeira História, a História do todo e de todos os seres.

Referências Bibliográficas

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