Pesquisa

domingo, 20 de abril de 2014

As Quatro Nobres Verdades - Parte 1


Introdução

Pra entender um pouco sobre o que são as Quatro Nobres Verdades, a gente precisa primeiro deixar um pouco mais claro a questão dos três Selos do Dharma. A definição de Dharmamudra já apareceu em outros posts, mas explico de novo de um jeito bem prático. Eles são:

1. A Impermanência:

Isso significa que não há nada que possa ser chamado de Meu ou de Eu nos elementos que te formam, nas coisas que te cercam ou em você enquanto manifestação individual. Eles apenas surgem e se combinam quando há causas para tal e desaparecem quando há causas para tal. Assim não existe nenhum fenômeno que possa ser abraçado como motivo de felicidade, pois tudo, absolutamente tudo que surge vai inevitavelmente declinar e desaparecer.

2. O sofrimento:

A palavra que a gente traduz como sofrimento é dukkha e ela é usada para transmitir a totalidade do que significa a experiência da existência humana. Dukkha tem, etimologicamente, ligação com a ideia de insatisfação, angústia, conflito, insegurança, desprazer, etc. Algo que nunca é completo, por isso se torna um mal, uma razão do crescimento de um sentimento de incerteza e consequentemente de tristeza. Esse termo aparece no primeiro sermão atribuído ao Buda. Ele diz:
“E essa, monges, é a Nobre Verdade do Sofrimento: nascimento é sofrimento, velhice é sofrimento, doença é sofrimento e morte é sofrimento, associação com o que não é querido é sofrimento, separação do que se é querido é sofrimento, não conseguir o que se quer é sofrimento – resumindo, os cinco agregados do desejo são sofrimento.” (Vinaya 1, p. 10)
Esse trecho trata do sofrimento humano, cobrindo todas as esferas da vida humana em três categorias. Perceba:

Sofrimento intrínseco – nascimento, velhice, doença e morte; É a visão fisiológica do sofrimento.
Sofrimento de mudança – associação com o que não é querido, separação do que se é querido; Visão psicológica do sofrimento.
Sofrimento inerente ao surgimento – não conseguir o que se quer; É a visão do sofrimento na perspectiva doutrinal, ou seja, propriamente budista, através do processo que dá surgimento ao sofrimento.

Estando as duas primeiras categorias bem claras, a terceira representa o sofrimento que advém da tentativa de agarrar-se aos constituintes da individualidade empírica. Ou seja, quero dizer que ao tentar buscar uma razão de felicidade ou satisfação nos elementos que nos formam, sofremos quando nos depararmos com essa impossibilidade, já que tanto nossos constituintes (os Cinco Agregados) quanto nós mesmos, como fenômenos somos impermanentes (surgimos e em algum momento nos dissolveremos). Assim, através da ignorância, damos início (ou surgimento) ao processo de dukkha, dessa forma nos fazendo cair na roda do samsara, em algum dos mundos, um assunto que já conversamos aqui no blog.

3. A Insubstancialidade

Não há nada que possua essência real, ou seja, os fenômenos precisam ser percebidos e interpretados. O que isso significa? Significa que as coisas surgidas não existem por si próprias. Elas precisam ser conhecidas através dos nossos sentidos e interpretadas pela nossa mente. Por isso, seja um lápis, você, o mundo ou o universo inteiro, nada possui substância, essência, realidade intrínseca ou ego fixo. A concepção que temos de nós mesmos e do mundo que nos cerca é uma construção da relação entre estímulos externos, nossa capacidade de percepção sensitória e a criação de um conceito mental. As palavras não possuem significado próprio, nós é que atribuímos o significado a elas, os rituais igualmente. Tudo é insubstancial. Por ser insubstancial, tudo é impermanente, por ser impermanente, tudo é insatisfatório (sofrimento/dukkha).

Todos os laços se partirão, tudo virá a findar. Existir é mero fluxo de causas e efeitos. E isso não é necessariamente pessimista, é apenas real. Vou falar mais sobre essa coisa do pessimismo abaixo, mas vale lembrar a frase que está acima do banner do blog pra quem “torceu o nariz” com essa afirmação. Contudo, o Budismo ensina o meio de escapar do sofrimento, e é disso que se trata as Quatro Nobres Verdades.

As Quatro Nobres Verdades

Qual a razão do Budismo ser chamado de Caminho do Meio? Eu já vi muita gente considerar bobagens como advogar ao Budismo um status de neutralidade, de “dormência” diante da vida, quando na verdade é exatamente o contrário. É uma atitude de força, vigor e disciplina na observação da própria mente, corpo e as relações que nos formam e formam todas as coisas. É o Meio, pois compreende que nem o pensamento eternalista (crença numa alma ou ego imutáveis) nem o engodo niilista (existência como mera relação psicofísica que é totalmente aniquilada sem nenhuma consequência restante após a morte) são adequados. O primeiro aprisiona a mente numa relação de dependência e esperança alucinatória, que pode criar angústia e medo e o segundo cai na doença hedonista abrindo as portas para o embotamento da consciência e a total negação de suas relações com o todo. A filosofia budista afirma que esses dois extremos devem ser evitados, pois:

A autoindulgência é um comportamento inferior, baixo, vulgar, ignóbil e conectado com a miséria humana;
A automortificação é insatisfação e ignorância, igualmente ignóbil e também conectado com a miséria humana.

O Caminho do Meio seria recomendado, pois ao contrário dos extremos, ele seria então, capaz de produzir uma compreensão que guia para a serenidade verdadeira, é um conhecimento superior, que é capaz de produzir a total iluminação e é o caminho ao Nirvana.

Quais são as Quatro Nobres Verdades?

1. A Nobre Verdade do Sofrimento: Tudo é sofrimento.
2. A Nobre Verdade da Causa do Sofrimento: O desejo é a causa do sofrimento.
3. A Nobre Verdade da Cessação do Sofrimento: O nirvana é a cessação do sofrimento.
4. A Nobre Verdade do Caminho que Leva à Cessação do Sofrimento: O Nobre Caminho Óctuplo leva à cessação do sofrimento.

Cada uma delas ainda é revestida de três aspectos. São o aspecto do Conhecimento da Verdade em questão, do Conhecimento de que tal Verdade deve ser compreendida e do Conhecimento que advém da compreensão de tal Verdade. Por exemplo:

1. A Nobre Verdade do Sofrimento;
É revestida pelo aspecto do Conhecimento de que o Sofrimento existe, do Conhecimento de que se deve compreender o que é o Sofrimento e do Conhecimento que advém da compreensão do que é o Sofrimento. E isso se repetiria com as outras desdobrando as Quatro Nobres Verdades em doze aspectos.

Por que são “Nobres” e por que são “Verdades”?

Um dos epítetos dos Budas e também dos discípulos é a palavra arya que significa nobre. Esse termo, no Budismo não tem o sentido de utopia, ilusão ou “idealização” do homem. Significa algo que deve ser posto em prática e vivido, menos ainda é usado num sentido étnico, mas sim de espírito, de conduta. Sendo assim, penetradas e ensinadas pelos Nobres, pilares de um ensino voltado apenas para os nobres e cuja descoberta e aprofundamento implica em nobreza, tais Verdades são Nobres.

A palavra traduzida como “verdade” é sacca, que cobre os significados de ausência de falsidade, ponto de vista verificável, verbalização de uma constatação. Sendo compreensíveis, constatações coerentes e experienciáveis, são Verdades.

A Doença da Mente

Em diversos textos o Buda é comparado com um médico e seu ensino com um remédio. As Quatro Nobres Verdades são também comparadas com o processo de análise de uma patologia e seu processo de cura. Veja:

1. Sofrimento: Análise da própria aflição, se física, psíquica ou doutrinal, permitindo a observação da origem e formação do “quadro”.

2. Causa do Sofrimento: É descoberta a raiz da aflição, que é o desejo de permanência dos fenômenos. Ou seja, compreende-se do que é composta a doença para que se entenda a sua causa.

3. Cessação do Sofrimento: Assim se descreve o que caracteriza o fim da condição aflitiva, o que indica que a doença foi curada ou a saúde recomposta, que é o Nirvana.

4. Caminho que Leva à Cessação do Sofrimento: É prescrito então o remédio, o Nobre Caminho Óctuplo.

Como já comentei acima, o fato de evidenciar o sofrimento e a insatisfação como inerentes à existência não significa que o Budismo é niilista, ou tem uma visão negativa sobre a vida, pois ele aponta o sofrimento e oferece um método para eliminá-lo. Na verdade, o pessimismo e o otimismo são muito semelhantes. Ambos são visões distorcidas da realidade, onde o indivíduo teme encarar a vida real por alguma razão. O primeiro através de evidenciar apenas aspectos negativos, antecipando a própria derrota, o segundo alimentando esperanças que podem se tornar frustrações, vivendo num paraíso ilusório, ou como a gente diz, construindo castelos de areia.

Assim, o primeiro passo é saber que dukkha existe, compreender sua origem e perceber o que significa ter consciência disso. Essa é a primeira das Quatro Nobres Verdades, o Sofrimento.
. . .
(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário