Li uma dissertação interessante, como era curta e bem simples, traduzi rapidinho pra que todo mundo pudesse aproveitar. Boa leitura!
O Conceito Budista de Mente
Prof. O. H. De A. Wijesekera
Buddhist Publication Society (Kandy - Sri Lanka)
Não seria exagero afirmar que de todas as religiões, o Budismo é a que dá mais importância à mente no processo de prática. Ou seja, o Budismo é a mais psicológica das religiões. Mesmo ética e lógica no Budismo são estudados a partir do ponto de vista psicológico. Isso permanece como característica fundamental no Budismo através de todos os seus estados históricos de desenvolvimento. Há alguns que creem que essa abordagem se restringe apenas ao Abhidamma Pitaka e à literatura subsequente, mas nenhum estudante sério do assunto pode concordar com uma opinião dessas. As doutrinas principais lidam com a natureza da mente humana e estão presentes já nos primeiros discursos, atribuídos ao próprio mestre, como preservados nos maiores livros do Sutta Pitaka, tais como o Digha e o Majjhima Nikaya. De fato, isso pode ser afirmado sem o menor medo de contradição, que os textos do Budismo tardio, posterior, não fazem nenhuma menção de algum aspecto fundamental da religião que não seja encontrado nos Nikayas iniciais. Esses aspectos são a mola-principal de tudo que o Budismo significa, seja no aspecto psicológico, ético ou filosófico.
Tal importância da psicologia Budista nos foi ofertada pela Rhys Davids em um de seus primeiros trabalhos. Todas as questões sobre religião e ética que ela levanta, têm levado em consideração a tendência de permitir que a vida seja absorvida num processo de busca de gratificação sensitória. E dentre as soluções procuradas estão a pura ascese, ou a supressão ao limite máximo consistente da vida, dos canais de impressão sensorial e o cultivo de um mundo-objetivo separado dos prazeres sensitórios, ou seja, relacionados com a ética e o intelecto.
Um terceiro viés é estudar e controlar o mundo-subjetivo, ou a mente, a qual podemos considerar como um objeto dentre outros objetos. Agora, na medida em que o budista se inicia e se desenvolve, tal terceira via torna-se notável e praticamente única característica presente na cultura religiosa budista.
Budismo inicial e o ascetismo
O Buda em seu período de ascese extrema. |
No Budismo primitivo, o ascetismo, puro e simples, é claramente rejeitado. Desde o primeiro sermão atribuído ao Buda, ele declara seu método deve ser o caminho do meio (majjhima-padipada) entre o ascetismo e a autoindulgência. Em outro diálogo, ele conta ter perguntado a um jovem homem chamado Uttara, um pupilo de um mestre brâmane, se e como Parasariya, seu mestre, ensinou o método de disciplina dos sentidos. "Sim," respondeu o estudante, "a pessoa não deve ver as coisas com os olhos e nem ouvir as coisas com os ouvidos. Esse é o método." "Sendo assim," replicou o Buda, "o cego e o surdo então devem ser os melhores em manter os sentidos sob controle." Então ele prossegue mostrando ao estudante brâmane como seu próprio método de treinamento espiritual é diferente. De acordo com ele, as impressões dos sentidos devem ser conscientemente e psicologicamente discriminadas como, aceitáveis, inaceitáveis ou neutras e então das atitudes resultantes, a repulsa ou o apreço advindos delas devem ser descartados, finalmente substituídos pela equanimidade acompanhada da atenção plena. O homem deve estudar a própria mente, conhecer e analisar seus componentes mentais e aprender a direcionar seus próprios sentimentos. Através de tal método, o praticante deve adquirir dois resultados: controle sobre os sentidos e impulsos por um lado e por outro, discernimento da natureza composta e condicionada da mente, que ao ignorante, parece ser um ego unitário, imutável e confinado na experiência.
Psicologia Ética
Assim percebemos que a tarefa principal do Budismo, logo no início da caminhada do treinamento espiritual, é estudar e analisar a própria mente, observar sua natureza e funcionamento; e o quão favoráveis ou desfavoráveis são os estados que emergem dela. É por isso que no Budismo há tanta ênfase depositada no aspecto psicológico da ética. De fato, é perfeitamente correto descrever o Budismo do Abhidhamma Pitaka como "ética psicológica." O ponto é que a psicologia budista não é apenas curiosidade científica, desprovida de aplicação prática na vida, mas uma vontade definitiva de cultivar uma mente favorável, evitando os estados mentais desfavoráveis. A mente deve se tornar saudável através de um método particular, que é dividido em sete partes, de acordo com o Sabbasava Sutta do Majjhima Nikaya. Tanto no método quanto no propósito de oferecer paz e harmonia mental, o Budismo tem mais relação com um sistema moderno de psicanálise do que com qualquer sistema de psicologia teórica. Enquanto, contudo, o Budismo seja a mais psicológica das religiões, não é meramente um sistema de psicologia, mas um plano perfeito de liberação pessoal. Agora, deve estar claro que o conceito de mente que é encontrado no Budismo inicial forma a base do desenvolvimento da religião como um todo. Mas o que exatamente alguém quer dizer quando usa a palavra "mente" para se referir ao Budismo? Não é necessária tanta reflexão assim pra entender que essa palavra é usada em muitíssimos sentidos em português. A melhor maneira de ter ao menos uma ideia superficial de seu uso no Budismo é, antes de tudo, procurando quais são os termos em páli traduzidos como a palavra da língua portuguesa "mente".
Estudantes de Budismo saberão que há muitos termos em páli que são traduzidos em diferentes contextos como "mente," os três mais comuns são mano, citta e viññana. Cada um deles pode às vezes, indicar em páli o que pode ser chamado de "fator não-físico" do homem e outros seres vivos, como consta no Digha Nikaya, quando condena a opinião errônea de alguns metafísicos de que "algo que seja chamado de citta ou mano ou viññana, seja a alma, permanente, constante, eterna, imutável, etc." Isso mostra que num uso comum da época, tais três termos eram aplicados mais ou menos como sinônimo de "mente." Porém, a aplicação mais técnica deles, nas partes psicológicas do cânone, revelam diferenças significativas no uso em certos contextos. Mano é empregado geralmente no sentido de instrumento do pensar, aquilo que cogita, e às vezes, no sentido daquilo que propõe e tenciona a algo, citta tem mais ou menos o sentido de "coração" (hadaya), o assento do sentir e se refere ao aspecto afetivo da mente enquanto experiência. O termo viññana, comumente tomado como consciência cognitiva, possui também uma conotação mais profunda do que os outros dois e em certos contextos indica o fator psíquico que é a causa do processo de renascimento. Pode-se afirmar que tais particulares formas de significado são características dos primeiros discursos. Não há dúvidas de que indicam algum aspecto interno, imaterial ou subjetivo da natureza humana e dessa forma, todos incluem o conceito Budista de mente, usando a palavra num sentido geral.
Análise do Homem
O Budismo analisa a totalidade do fenômeno homem através dos cinco agregados, o pañcupadanakkhandha, ou seja, o agregado da forma (rupa), o agregado dos sentidos (vedana), o agregado da percepção (sañña), o agregado dos constituintes mentais (sankhara) e da consciência (viññana). Pode-se notar nessa distribuição que os quatro últimos são fatores não-físicos no homem, que são geralmente descritos com a palavra "mente." Em páli, tais cinco agregados são chamados de “nama-rupa” (mente e corpo), compreendendo um indivíduo, o que mostra que os quatro últimos, vedana, sañña e viññana são considerados conjuntamente como "nama" o que geralmente é traduzido como "mente." Desses quatro componentes de nama, deve-se considerar que os dois primeiros, vedana e sañña, são fenômenos que surgem dependendo de rupa, ou a base material do indivíduo, que por si próprio determina a duração de seu contínuo surgimento e dissolução. Isso significa que as sensações e a percepção (ou cognição) podem tomar lugar apenas onde há sentidos (indriyas) e que existem apenas no corpo físico. Contudo, os outros dois, sankhara e viññana, possuem raízes mais profundas no fluxo de bhava ou a continuidade samsárica, sendo, em algum sentido, a causa de tal continuidade. Isso é visto nas duas famosas máximas do paticcasamuppada, a saber, Sankhara-paccaya viññanam, viññana-paccaya namarupa. Assim devemos entender os dois termos, shankhara e viññana, como aparecendo na análise do pancupadanakkandha, no sentido estrito de tais disposições e atos da consciência, que se manifestam apenas enquanto o corpo e a mente estão unidos. Mas eles possuem um significado mais profundo na fórmula da originação dependente. É em seus aspectos samsáricos que eles recebem ênfase nesse contexto. É isso que se quer dizer com: "viññana-paccaya namarupam," ou seja, namarupa surge dependendo de viññana e consequentemente numa passagem do Anguttara Nikaya, ambos sankhara e viññana são vistos agrupados sob o termo bhava que significa "vir a ser" ou continuidade do fluxo da existência samsárica. Na visão de tais considerações, não será tão difícil de entender agora o significado da importante ideia que se encontra do Digha Nikaya de que o nama-rupa depende de viññana e viññana depende de nama-rupa. Em termos modernos, isso significaria que o indivíduo, como constituído de corpo e mente, depende da presença do fator psíquico para sua existência, assim como o fator psíquico, por sua vez, depende do processo corpo-mente unificado para manter sua existência empírica.
Estudantes de filosofia moderna não falharão em perceber o quão próximo tal análise do indivíduo se aproxima da "Teoria Composta" do Professor Broad, filósofo de Cambridge, como está exposto em seu famoso tratado The Mind and its Place in Nature. "Mesmo que não conheçamos a 'mente'", ele escreve, "como composta de dois fatores, nenhum deles separadamente possui características próprias de mente. ... Chamemos um de tais constituintes de 'fator psíquico' e o outro de 'fator corporal'. O fator psíquico poderia ser como um tipo de elemento químico que não pode ser isolado e cujas características de mente dependeriam conjuntamente daquelas do material orgânico ao qual está unido." É interessante notar que o Professor Broad usa o termo "fator psíquico" exatamente como um budista usaria a palavra viññana quando se refere ao fator no homem que causa a continuidade samsárica, ou seja, se torna a causa de um novo nascimento e morte.
Um Conceito Complexo
Agora deve estar claro que o conceito budista de mente é muito mais complexo do que a noção dos psicólogos ocidentais, que o compreendem dele algo geralmente chamado de funções afetivas, cognitivas e volitivas no homem. Como as escolas modernas de psicanálise, o Budismo considera mente como ambos, consciente e inconsciente, em funcionamento. Tais conceitos como sankhara e bhavanga, presentes na literatura páli inicial, mostram que os budistas consideravam a existência de estados inconscientes na mente muito, muito antes do ocidente. Uma análise do termo sankhara claramente mostra essa ideia. O Budismo do cânone páli é largamente devotado ao exame e análise da mente, em ambos aspectos consciente e inconsciente. Tal exame, que é um caso de auto-observação e introspecção, é sustentado como fundamentalmente importante na prática da religião. A importância da auto-observação, a correta observação de como nossa mente trabalha e os bons e maus estados mentais que dela emergem, é necessária se desejamos praticar o Nobre Caminho Óctuplo. O Esforço Correto consiste em suprimir o surgimento de estados mentais desfavoráveis, erradicando aqueles que já surgiram, estimulando bons estados mentais e aperfeiçoando aqueles que têm surgido. Assim como o Professor Radhakrishnan destacou, o Budismo considera que "o hábito de auto-observação é um caminho eficaz para se lidar com o inferno que reside na mente humana, desarraigar os desejos malignos e o apego, manter o equilíbrio entre a mente consciente e a outra parte de nosso equipamento, o complexo aparato psíquico e físico." De fato, a psicologia budista em sua totalidade opera por esse propósito. Esse é a força motriz da análise do Abhidamma.
O Homem como Escravo da Mente
O homem é, por natureza, mais um escravo de sua mente do que seu mestre. Como Maha Moggallana explicou um dia a Sariputta, uma pessoa deve ter sua mente sob controle (cittam vasam vatteti) e não permitir que a mente obtenha vantagem sobre si (cittassa vasena vattati). O grande otimismo da psicologia budista, diferente de, por exemplo, o sistema Freudiano, é que o homem pode controlar, guiar e subjugar sua própria mente (cetasa cittam abhinigganhati), e assim encontrar e eliminar as más propensões de si próprio, sem necessariamente ir a um analista[1]. Deve-se lembrar de que a força de vontade no Budismo, embora seja um aspecto da mente, pode ainda agir como controle da mente, em ambas esferas consciente e inconsciente. Isso é possível, pois como afirma o Anguttara Nikaya, a mente, quando cultivada, é algo mais maleável (kammaniya) de se lidar. O termo 'cultivo' (bhavita) aqui significa o processo de cultura mental que é chamado de bhavana no Budismo. Ele é possível pelo fato do Budismo considerar a causalidade tão real para a mente quanto os objetos externos.
Por isso, o ensino ético fundamental do Buda é o de que a mente precisa ser treinada e limpa de propensões malignas. Afirma-se que "Purifique a própria mente" (sacittapariyadapanam) é a síntese de todo o ensinamento ético do Buda. O Abhidhamma dedica-se a ampliar esse ensino sobre ética psicológica. Por exemplo, há quatorze estados imorais, a saber: estupidez, imprudência, negligência das consequências [das ações], distração, ganância, erro de julgamento, presunção, ódio, inveja, egoísmo, preocupação, preguiça, entorpecimento e perplexidade. Tais estados devem ser suprimidos e eliminados. Dentre as dezenove propriedades psicológicas ditas favoráveis, que devem ser cultivadas, estão as seguintes: Autoconfiança, atenção, prudência, discrição, desprendimento, amizade, equilíbrio da mente, calma dos impulsos corporais, a suavização de tais impulsos, etc.
A Mente não é um Ente Permanente
Contudo, o maior bem que advém ao praticante budista através da auto-observação e análise da própria mente, é o desarraigar dos ensinos espúrios (micchaditthi), que consideram a mente ou qualquer um de seus estados derivativos como um Ego ou Alma, o que significa um ente ou sujeito permanente que habita no homem. Buda não nega uma relação entre objeto e sujeito como experiência, mas tal sujeito (cujo mais interior é simplesmente o fluxo de viññana) não é, em nenhum sentido, um tipo de alma permanente e imutável. O Budismo até mesmo considera a ação ou atividade do sujeito (attakara, purisakara), mas isso não é simplesmente a "mente como homem" que a Rhys Davids considera ser a mesma alma ou atman dos Upanishads em seus escritos tardios. O Budismo não afirma que as ideias e as sensações estão simplesmente dispersas pelo mundo como existências soltas e separadas, para usar a frase do psicólogo McDougall, mas para o Budismo, assim como para McDougall, eles se aderem em sistemas que constituem cada um a uma mente. A diferença entre a psicologia budista e a maior parte das outras se refere à verdadeira natureza da mente ou da unidade psicológica individual. Assim como tentei demonstrar nesta dissertação, a mente do indivíduo não consiste na ideia de um objeto metafísico sólido como o Ego ou a Alma que certas religiões e filosofias se baseiam. Nem sequer é concebido como citta ou mano ou viññana, apenas um aspecto de tal dinâmica de impulsos vitais (sankhara) que são categoricamente considerados no Budismo como anicca, impermanentes, duhhka, sujeitos à decadência e ao sofrer e anatta, vazios de qualquer substância ou essência. Para o Budismo, a mente é apenas um fluxo, uma agitação à deriva na superfície do curso do vir-a-ser (bhavasota). O budista não pode, portanto, de nenhuma forma, alimentar a crença de que a mente é de alguma forma, uma entidade imutável, ou um ego permanente. E isso, claramente, é a lição mais importante ensinada pela análise budista do conceito de mente.
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[1] Não expressa inteiramente minha opinião. Achar que meditação cura pânico, stress e ansiedade é perigoso e abre as portas do charlatanismo.
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