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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Sutra do Lótus - Resumo capítulo por capítulo - Cap 17 ao 21


Capítulo 17 – Exposição do Mérito Derivado da Aprovação

Buda reitera o capítulo anterior sobre os méritos acumulados por aquele que ouve e prega o Sutra do Lótus. Conta uma parábola de um rei muito generoso que vivia para beneficiar todos os seres de seu reino e que, portanto, obtinha muitos méritos. Entretanto, compara este monarca com alguém que guardou um único verso do Sutra do Lótus, afirmando que este é superior àquele. Quem acata o Sutra do Lótus é beneficiado com a Sabedoria e Conduta irrepreensível; mais uma vez o tom dessa mensagem exprime a ideia de se “incorporar” o Sutra, ao invés de considerar as palavras do Buda como meras regras que são impostas dogmaticamente do exterior para o interior do homem.

Capítulo 18 – Benefícios Obtidos pelo Pregador do Dharma

O capítulo continua a enumerar os benefícios adquiridos pelo pregador do Sutra. Fala sobre uma sensibilidade maior dos órgãos dos sentidos, adquirido pelo Bodhisattva através de sua disciplina. A visão torna-se capaz de perceber melhor as conexões karmicas (relação entre causa e efeito). A audição é aperfeiçoada, aumentando-se o poder de compreensão, assim, como o olfato que começa a distinguir melhor o perfume da podridão. Ao mesmo tempo em que o paladar também se ajusta, transformando sabores amargos em doces, a sensibilidade do tato faz com que o Bodhisattva sinta seu próprio corpo como um corpo de um Tathagata. Enfim, a mente também se beneficia, mantém-se melhor concentrada, aprende a utilizar-se dos Meios hábeis para propagar a Doutrina e interpreta o Dharma com maior facilidade e clareza.

Capítulo 19 – Sadaparibhuta, o sempre menosprezado

Houve, certa vez, em meio a uma época de degeneração do Dharma, um monge Bodhisattva chamado Sadaparibhuta, “Sempre Menosprezado”, que aderiu ao ensinamento Mahayana e expressava que tanto monges, monjas, leigos e leigas já estavam, mesmo sem o saber, praticando a carreira do Bodhisattva e que todos alcançariam a Perfeita Iluminação, que é a meta do Mahayana. Os Budistas que pertenciam ao Hinayana se encolerizavam com ele e o desprezavam, pois suas crenças eram diferentes. Porém, ao final de sua vida, este monge ouve a pregação do Lótus, adquire a pureza dos sentidos (capítulo 18) fazendo com que os Budistas que o desprezavam se convertessem ao Mahayana e adentrassem na Grande Assembleia dos Bodhisattvas. Este monge era o próprio Shakyamuni em um renascimento anterior, que alcançou a Iluminação graças ao entendimento do Sutra do Lótus.

Capítulo 20 – A Realização do Poder Extraordinário do Tathagata

Parte 1 – O Voto dos Bodhisattvas

Aqueles Bodhisattvas que emergiram das concavidades da Terra (capítulo 14) comprometem-se em memorizar e ensinar o Dharma para o bem dos seres. Da mesma maneira, outros na Assembleia fazem este voto, comportamento que recebe a aprovação do Buda.

Parte 2 – O milagre da Língua

Então, o Bhagavant Shakyamuni e Prabhūtaratna, assentados no Trono no meio da Stupa descrita no capítulo 11, abriram suas bocas e deixaram sair suas línguas e por suas línguas incontáveis Bodhisattvas surgiram, todos dourados e dotados das Trinta e Duas marcas dos Grandes Homens. Após recolherem as línguas, os Bhagavants fizeram sons pela garganta e estalaram os dedos, fazendo com que todos os Mundo de Budas tremessem. Com o tremor, todas as Assembleias de  todos os mundos prestaram homenagens aos Tathagatas e puderam enxergar com clareza o mundo Saha. A língua nessa passagem deve ser entendida como um símbolo que representa a grande eloquência dos Budas que lhes permite fazer chegar a Doutrina a todos os seres. Assim como a língua se estende por todos os universos, assim também se estende o Dharma.

Parte 3 – Exaltação ao Sutra do Lótus

Esta parte descreve homenagens que os Bhagavants e o Sutra do Lótus recebem dos seres presentes diante da Stupa. Shakyamuni repete mais uma vez os benefícios de se ouvir e ensinar o Sutra do Lótus, complementando que em qualquer lugar onde este Sutra for ensinado, um monumento em homenagem e honra ao Tathagata deve ser construído; este monumento deve ser considerado como o próprio Trono da Iluminação de todos os Budas, como o local onde a Roda da Lei foi colocada em movimento por todos os Tathagatas.

Capítulo 21 – As Dharanis

Neste capítulo Dharanis e Mantras são dados por Bhaishajyaraja, Pradanashura e pelos reis Vaishravana e Virudhaka a fim de se levar proteção aos Pregadores do Dharma. Estes Dharanis e Mantras não são fórmulas mágicas, mas frases que quando repetidas e meditadas mantém a mente do pregador resoluta, firme; facilitam insights e fortalecem os discípulos contra os demônios, mantendo-os na vivência do Dharma. Aqueles que atacam os pregadores do Sutra são punidos com destinos infelizes, não por alguma ação mística, mas por consequência do próprio karma negativo que produziram.

Leia os capítulos anteriores

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Não procure o Budismo...


Se você quer milagres, não procure o Budismo. O supremo milagre para o Budismo é você lavar seu prato depois de comer.

Se você quer curar seu corpo físico, não procure o Budismo. O Budismo só cura os males de sua mente: ignorância, cólera e desejos desenfreados.

Se você quiser arranjar emprego ou melhorar sua situação financeira, não procure o Budismo. Você se decepcionará, pois ele vai lhe falar sobre desapego em relação aos bens materiais. Não confunda, porém, desapego com renúncia.

Se você quer poderes sobrenaturais, não procure o Budismo. Para o Budismo, o maior poder sobrenatural é o triunfo sobre o egoísmo.

Se você quer triunfar sobre seus inimigos, não procure o Budismo. Para o Budismo, o único triunfo que conta é o do homem sobre si mesmo.

Se você quer a vida eterna em um paraíso de delícias, não procure o Budismo, pois ele matará seu ego aqui e agora.

Se você quer massagear seu ego com poder, fama, elogios e outras vantagens, não procure o Budismo. A casa de Buda não é a casa da inflação dos egos.

Se você quer a proteção divina, não procure o Budismo. Ele lhe ensinará que você só pode contar consigo mesmo.

Se você quer um caminho para Deus, não procure o Budismo. Ele o lançará no vazio.

Se você quer alguém que perdoe suas falhas, deixando-o livre para errar de novo, não procure o Budismo, pois ele lhe ensinará a implacável Lei de Causa e Efeito e a necessidade de uma autocrítica consciente e profunda.

Se você quer respostas cômodas e fáceis para suas indagações existenciais, não procure o Budismo. Ele aumentará suas dúvidas.

Se você quer uma crença cega, não procure o Budismo. Ele o ensinará a pensar com sua própria cabeça.

Se você é dos que acham que a verdade está nas escrituras, não procure o Budismo. Ele lhe dirá que o papel é muito útil para limpar o lixo acumulado no intelecto.

Se você quer saber a verdade sobre os discos voadores ou sobre a civilização de Atlântida, não procure o Budismo. Ele só revelará a verdade sobre você mesmo.

Se você quer se comunicar com espíritos, não procure o Budismo. Ele só pode ensinar você a se comunicar com seu verdadeiro eu.

Se você quer conhecer suas encarnações passadas, não procure o Budismo. Ele só pode lhe mostrar sua miséria presente.

Se você quer conhecer o futuro, não procure o Budismo. Ele só vai lhe mandar prestar atenção a seus pés, enquanto você anda.

Se você quer ouvir palavras bonitas, não procure o Budismo. Ele só tem o silêncio a lhe oferecer.

Se você quer ser sério e austero, não procure o Budismo. Ele vai ensiná-lo a brincar e a se divertir.

Se você quer brincar e se divertir, não procure o Budismo. Ele o ensinará a ser sério e austero.

Se você quer viver, não procure o Budismo, pois ele o ensinará a morrer.

Reverenda Yvonette Silva Gonçalves

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Sutra do Lótus - Resumo capítulo por capítulo - Cap 15 e 16

Capítulo 15 – Duração da Vida do Tathagata

Parte 1 – Resposta às dúvidas do Capítulo Anterior

Nesse capítulo Buda responde às perguntas que lhe foram feitas no capítulo 14, com relação a como é possível que nos anos em que sua pregação durou, uns quarenta anos, tenha podido converter e instruir uma quantidade praticamente infinita de Bodhisattvas. Shakyamuni responde afirmando que Ele alcançou a Iluminação há muitos milhões de Períodos Cósmicos e que a duração de Sua vida não tem limites. Obviamente Shakyamuni não está falando do seu Corpo Manifesto, mas sim da própria Natureza de Buda que o permeia, a Verdade, que sendo absoluta é imutável, ou seja, a mesma desde sempre. Buda diz que ao mesmo tempo em que ingressou, também não ingressou no Nirvana, referindo-se ao Corpo da Manifestação (Nirmakaya) e ao Dharmakāya, respectivamente. Buda deseja que os seres não se tornem dependentes dele como homem, mas sim que despertem a Mente Iluminada e tenham o “Tathagata dentro de si”. Para ilustrar estas explicações, O Iluminado recorre à parábola do médico que utilizando-se de um estratagema, liberou todos os seus filhos da enfermidade.

Parte 2 – Parábola do Médico que liberou todos os seus filhos da enfermidade

Um médico e pai notando que seus muitos filhos estavam doentes e com suas mentes transtornadas devido ao uso de uma substância tóxica, preparou-lhes um remédio. Contudo, vários enfermos não queriam se medicar, crendo que a simples presença do pai era suficiente para que ficassem sãos. Em face a este problema, o médico bolou uma estratégia, dizendo que estava pra morrer, mas que o remédio continuaria com eles e que poderiam bebê-lo se assim desejassem.
Então, o pai de família viajou para longe, a fim de simular sua morte e os filhos, movidos de tristeza e sensação de desproteção, enfim, beberam o antídoto e ficaram saudáveis. O médico, sabendo que seu rebento estava livre da doença, reapareceu.
Da mesma maneira age o Tathagata, pelos Meios Hábeis dá a entender que já se Nirvanizou ou logo  vai se extinguir e que não estará sempre presente para nos ajudar, quanto que na verdade, a duração de sua vida é infinita. Ou seja, para evitar que os seres caiam na desídia, Buda não revela que está sempre ativo no mundo.

Parte 3 – O Mundo de Buda

As pessoas não conseguem ver o Mundo de Buda como ele o é, julgam-no como um “lugar” onde há apenas dor. Contudo, este Mundo é maravilhoso e esplêndido, mesmo com estas supostas “imperfeições”. Os seres não percebem esta realidade por estarem submetidos à ignorância e à ilusão. Somente com o cultivo do bom karma, os seres começam a perceber a realidade em sua essência e conseguem enxergar o Tathagata. O Mundo é perfeito não no sentido de uma Justiça Universal que beneficie o homem, mas em relação à forma com que os fenômenos ocorrem visando sua auto manutenção e propiciando a vida (o sofrimento como sendo primordial para a existência).

Essa foi a tradução do Sutra que usei nesse resumo

Capítulo 16 – A Exposição dos Méritos

E por causa da Pregação sobre a Duração da Vida do Tathagata, os Bodhisattvas ali presentes ingressaram no Arya Marga [1], se beneficiaram com dharanis e obtiveram uma forte eloquência, colocando em movimento a Roda da Lei.

[1] Arya Marga, o Nobre Caminho, composto por sua vez de quatro degraus:
1º Vencedor da Corrente (corrente no sentido de fluxo): não possui mais a ideia de um eu permanente, percebeu que os ritos, regras e rituais são insubstanciais e não se apega mais à dúvida meramente especulativa.
2º Aquele que renasce apenas mais uma vez: é aquele que renasce no mundo humano e não retorna mais aos mundos inferiores. Se ele fraquejar, sua oscilação é mínima e rapidamente ele retorna ao mundo humano. Esse “apenas uma vez” é simbólico, quer dizer que ele não está mais apegado à convulsão dos mundos inferiores. Sua consciência permanece somente em estados elevados e ele não se ilude mais, nem sofre com os três tipos de desejo e nem ódio.
3º Aquele que não mais retorna: Após atingir o mundo humano ele deixa de oscilar definitivamente, sem abandonar esse estado até que atinja o nível superior.
4º Estado de Arhat: o Arhat é um Iluminado. A diferença entre um Buda e um Arhat, de acordo com o Budismo Mahayana, é que um Buda adentrou à Grande Extinção, o Parinirvana.

Mesmo que o Bodhisattva pratique as Cinco Perfeições: Doação, Disciplina Moral, Paciência, Energia e Meditação; ele não terá a mesma quantidade de méritos que tem aquele que assimilou o ensinamento da “Duração da Vida da Tathagata”. Para os homens que, dotados de firme resolução, e conservando em suas memórias a Palavra Sagrada, compreenderem a Linguagem Intencional (os Meios Hábeis), para eles não existirá dúvida, estarão sempre aos pés do Buda no Pico do Abutre, ouvindo o Dharma da “própria boca do Bhagavant”, serão venerados e homenageados por aqueles que estiverem desejosos pela Doutrina e visualizarão o Mundo Saha adornado com ouro e pedras preciosas.
Isso não significa de modo algum que aquele que “tem fé no Sutra do Lótus” esteja isento de ter que praticar as qualidades descritas pelas Cinco Perfeições. O texto está dizendo que quando o Ensinamento encontra-se assimilado intelectualmente, há uma mudança de paradigma na forma com que a realidade é percebida, as Perfeições continuam sendo manifestas, porém não são executadas como em outrora (como pelo Budismo Hinayana ou Mahayana menor), mas como decorrência de uma experiência Espiritual transcendente.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Uma reflexão sobre a Alma - Aristóteles

“De Anima” de Aristóteles – Livro I

Aristóteles, no livro I do “de Anima” [1], propõe uma discussão sobre a importância do tema Alma e as dificuldades na abordagem deste assunto. 
A maioria das pessoas pensa que discorrer sobre a Alma é uma perda de tempo, pois a Alma não é algo palpável ou detectável aos sentidos. Muitos, principalmente os céticos, julgam qualquer pensamento que transcenda a física como apenas fruto de conjecturas e abstração, classificando esse tipo de conhecimento como vão. Há ainda aqueles que defendem que o tema está somente vinculado à espiritualidade ou à religião e que tudo a respeito da Alma só pode ser aceito por meio de fé ou superstição e nunca por uma via demonstrativa ou filosófica. Estes pontos de vista são facilmente desconstruídos se analisarmos a história da filosofia e do pensamento, tanto no Ocidente, quanto no Oriente. No Oriente as maiores contribuições com repeito a Alma são oriundas da metafísica das “religiões” locais, a exemplo do Brahmanismo (Hinduísmo) e do Budismo, que definem basicamente a Alma como única em todo o universo; uma “substância coletiva” à lá Spinoza, que foi interpretada equivocadamente como panteísmo pelos modernos. Para o oriental, em suma, há uma relação entre Alma e corpo, elas não são a mesma coisa, mas também não são separadas [2].

“Eu não ensino que exista algo chamado velhice e morte e que há alguém a quem eles pertençam. Se alguém sustenta a visão de que jiva (princípio da vida, alma) é idêntico ao corpo, em tal caso não há vida santa. Se alguém sustenta a visão de que jiva é uma coisa e o corpo é outra, nesse caso então a vida santa é impossível.”
Saṁyuta Nikāya XII,35 – Literatura Budista [3]


Do pensamento Grego à modernidade, é possível verificar muitos pensadores ocidentais que se esforçaram em definir a Alma e de, inclusive, classificá-la quanto a suas características e atributos. Aristóteles mesmo, na segunda parte do livro I da obra citada, enumera vários filósofos ocidentais, apontando contradições e tentando, a partir do que já foi dito sobre o tema, construir seus argumentos. De modo avesso ao entendimento oriental, uma parte considerável dos ocidentais costumava classificar os entes como constituintes de almas distintas (uma para cada ser); apesar dessa convergência, o Livro I da obra analisada enumera também diferenças, separando os ocidentais em três grupos: (a) aqueles que definiam a Alma a partir do movimento, (b) aqueles que a definiam a partir da potencialidade de conhecimento e da distinção entre seres animados ou não e (c) aqueles que julgavam a Alma um ente sem massa que se infunde à matéria.

Essas tentativas buscam basicamente um mesmo objetivo, que pode ser sintetizado pela afirmativa de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Todos esses pensadores perceberam que parece existir algo universalmente responsável pela vida, pela propulsão do movimento e pela agregação e desagregação da matéria sob diversas formas, pois de outro modo não existiriam os seres e tudo seria amorfo. A palavra animação deriva de Anima, que é a Alma; este “estopim da vida”, pelo seu caráter universal e, portanto, Metafísico, não pode ser demonstrado matematicamente e não pode ser reproduzido experimentalmente ao bel prazer como um fenômeno natural qualquer, ou seja, não pode ser avaliado com uma certeza absoluta. Mesmo em meio a estas enormes incongruências, os filósofos não desistiram de abordar o assunto. Aristóteles afirmava, mesmo diante destas complicações, ser possível dizer algumas coisas sobre a Alma e, ainda por cima, com um bom nível de certeza; segundo ele, refletir sobre os seres animados se faz necessário, é um princípio comum, e os resultados advindos dessa construção Metafísica podem contribuir para que o homem conheça melhor a vida que o circunda e também a si mesmo, fazendo valer, assim, a assertiva de Delfos [4].

A Metafísica é essencialmente o conhecimento do universal, ou, dos princípios de ordem universal. É impossível dar uma definição melhor que esta, em razão dessa universalidade mesma que é sua primeira característica e aquela da qual derivam todas as outras. Na Realidade, só o que é limitado pode ser definido, e a metafísica é, ao contrário, na sua própria essência, absolutamente ilimitada. Os conhecimentos das ciências naturais estão limitados à experiência, enquanto que a Metafísica é constituída por algo do qual não há nenhuma experiência: sendo “além da física”, não podendo estar, desta maneira, submissa a nenhum grau de mutabilidade e influência de épocas e lugares. O contingente, o acidental e o variável, são pertencentes ao domínio individual e apresentam-se em múltiplas modalidades, não são, portanto, universais. Quando se trata da Metafísica, o que se pode mudar com os tempos e os lugares são apenas os modos de exposição, ou seja, as formas mais ou menos exteriores com as quais a metafísica pode ser revestida e que são suscetíveis de diversas adaptações. Entretanto, essencialmente, a Metafísica sempre permanece perfeitamente idêntica a si mesma, porque seu objeto é essencialmente uno e além de qualquer mudança. A Metafísica utiliza-se de palavras, mas é na realidade inexprimível, por comportar a Essência, é algo que cada um pode conceber somente por si mesmo, com a ajuda de palavras e símbolos que servem simplesmente como ponto de apoio para a sua concepção; a compreensão de uma doutrina metafísica será mais ou menos completa e profunda segundo a medida em que uma pessoa, meritocraticamente, a conceber efetivamente. A Metafísica não recorre a qualquer meio externo de investigação, mas sim à introspecção e à Intelectualidade, e pode ser conhecida por homens de todas as épocas, contanto que estes busquem e amem a Verdade, colocando-a acima dos próprios desejos pessoais ou necessidades de consolação.


Aristóteles difere Intelecto da razão, o Intelecto é aquilo que possui imediatamente o conhecimento dos princípios. O pensador declara expressamente que “o Intelecto é mais verdadeiro que a ciência, isto é, que a razão constrói a ciência, mas que nada é mais verdadeiro que o Intelecto”, já que este é necessariamente infalível por sua operação ser imediata, praticamente intuitiva, e, não sendo realmente distinto de seu objeto, ele forma um só corpo com a própria Verdade. Tal é o fundamento essencial da certeza metafísica; vê-se por aí que o erro só pode ser introduzido pelo uso da razão, porque a razão, diferentemente do Intelecto, é falível por consequência de seu caráter discursivo e mediato [2].

“Acontece que a doutrina da alma é como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da Verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contemplação aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados.”
Conimbricense – Sobre os Três Livros “da Alma” de Aristóteles [4]

Estudar a Alma é estudar a Essência dos fenômenos. Os fenômenos nada mais são do que acidentes ou consequências de uma causa primeira e hierarquicamente superior, que é a Alma. No ser humano, a Alma, segundo o discípulo de Platão, é aquilo que provê, além da vida e o movimento, os sentimentos e o intelecto; sendo que as funções intelectuais e sensitivas, ultrapassam a matéria e as condições do corpo. É a Alma quem imprime a forma aos corpos: forma humana para os humanos, animal para os animais e vegetal para os vegetais, é ela quem define o gênero ao qual um ser pertence. O ser individual é encarado como um composto de dois elementos, matéria e forma; esses dois elementos são em suma a essência e a substância da individualidade. O termo forma designa a “Essência Individual”, a forma não é exclusivamente a forma corporal, mas para além disso é também o conjunto inerente de potencialidades e características de um ser de uma determinada espécie. Logo, a Alma domina o sensitivo e o material. Atos da vontade, por exemplo, amar e querer são considerados operações superiores, em ordem de importância, aos atos dos sentidos e do apetite e aqueles (os superiores) são capazes de controlar estes (os inferiores). É neste contexto que o “de Anima” elenca os assuntos filosóficos, da mesma maneira, em uma sequência hierárquica, ou seja, em graus de Nobreza. Os fenômenos “acidentais” e físicos, provenientes da matéria, seriam assuntos menos nobres do que assuntos Metafísicos - a “ciência” da Essência é mais Nobre que as demais ciências. Seguindo o mesmo pensamento, Aristóteles ainda elenca graus de dificuldade em se obter conhecimentos exatos e satisfatórios das “ciências”; quanto mais ligadas aos fenômenos naturais, à lógica “objetiva” e à percepção dos órgãos dos sentidos, mais fácil é obter um elevado grau de certeza, já quanto mais próximo um assunto for da Essência, maior será seu grau de dificuldade e de entendimento. Ou seja, Nobreza e facilidade de entendimento são inversamente proporcionais.

Ciente desses percalços inerentes a uma filosofia metafísica, o pensador grego arrisca-se em definir a Alma e determinar o gênero a qual esta pertence. Ao longo dos livros do “de Anima”, pronuncia-se se a Alma é uma substância, se pode ser classificada em termos de quantidade e qualidade, se pertence aos seres em potência ou se é um tipo de ato, se é divisível ou indivisível e se é igual em todos os seres. Procura compreender as funções da Alma quanto a sua faculdade perceptiva, se o sensível vem antes do perceptível, se as afecções da alma precisam ou não do corpo, difere ainda tipos de movimentos (internos ou externos) e qual deles é oriundo da Alma, quais são os efeitos da corrupção do corpo nas faculdades perceptíveis, se a Alma é imortal, se pode subsistir separada da matéria, etc. Obviamente as conclusões alcançadas não tem caráter demonstrativo pelo próprio perfil do que está sendo estudado, contudo, são apresentados argumentos verossímeis, visando construir um sólido e lógico conhecimento. [4]


Enfim, apesar do tema Alma não ter a mesma exatidão de outras áreas do conhecimento, é possível se obter, através de uma Metafísica baseada na “Intelectualidade Pura”, algumas certezas sobre o assunto. Os filósofos, tanto orientais quanto ocidentais, ao perceberem que havia um elo capaz de animar a matéria, movimentá-la e uni-la, gerando assim, entes e seres; concluíram que a Alma é um princípio de organização que não pode estar reduzido à matéria. Ou seja, a Alma é uma capacidade imaterial.

Aristóteles já dá uma pista neste Livro I de que há “hierarquias de Almas”, elegendo o intelecto e a vontade, pertencentes exclusivamente à Alma Humana, como potencialidades de uma Alma mais desenvolvida em relação aos animais e vegetais. Prega, seguindo o raciocínio, a existência de uma hierarquia semelhante nas ciências: a “ciência da alma”, por seu perfil universal e Metafísico, ganha o peso máximo de Nobreza, pois está diretamente conectada ao ideal filosófico do “conhecer a si mesmo”; é um conhecimento útil, pois permite ao homem alcançar de maneira mais eficiente a Verdade. Por outro lado, afirma que quanto mais Nobre um assunto for, maior é a dificuldade de compreensão, exigindo do estudioso maior poder de investigação e inteligência. Os céticos acusam a Metafísica de ser somente fruto de abstrações e conjecturas que não garantem nenhuma certeza e que sem essa “exatidão mínima”, requerida para se construir uma argumentação “pé no chão”, não vale a pena debruçar-se sobre um determinado tema. Aristóteles, por sua vez, mesmo admitindo as dificuldades em se fazer Metafísica e apresentando a tese de que nem todo objeto apresenta o mesmo grau de inteligibilidade, defende a importância de se estudar todos os assuntos, inclusive os “além da física” e que este esforço é imprescindível na busca pela Verdade.

Bibliografia:

1. Aristóteles. De Anima (Sobre a Alma). Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 2010;
2. Guénon, R. Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus. São Paulo. Editora IRGET. 2014;
3. The Book of the Kindred Sayings, tr C. A. F. Rhys Davids & F. L. Woodward, 1917.  Pali Text Society, Bristol;
4. P. Manuel de Góis, Mário S. de Carvalho, Maria da Conceição Camps. Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus Sobre os Três Livros do Tratado 'Da Alma' de Aristóteles Estagirita. Lisboa. Edições Sílabo. 2010.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Sutra do Lótus - Resumo capítulo por capítulo - Cap 13 e 14

Capítulo 13 – A Existência Feliz


Parte 1 – O Proceder do Bodhisattva

A existência do Bodhisattva deve ser baseada na boa conduta, satisfazendo, para isso, certas condições: generosidade, autocontrole, não ter medo ou temor e estar despojado da inveja; enxergar a realidade como ela é e eliminar suas dúvidas em relação à natureza dos dharmas (fenômenos).
O Bodhisattva não deve se misturar com a politicagem de ministros e reis, nem reverenciar os adeptos de outras religiões, nem os devotados à poesia, nem os supersticiosos, nem os materialistas, não deve se misturar com o populacho, nem com aqueles que exaltam a violência, nem com os que comercializam ou comem carne, nem com caçadores, nem com os que frequentam a vida noturna ou gostam de jogos de azar; unicamente lhes prega de tempos em tempos o Dharma quando se aproximam dele, e lhes prega sem se apegar a eles. O Bodhisattva não deve reverenciar monges e leigos que não acreditam no Veículo Único, não deve ficar de engraçamento com as mulheres, nem ensinar aos promíscuos. Não deve fazer fofocas e ficar “mostrando os dentes” por qualquer motivo. Além disso, deve cultivar uma vida contemplativa e solitária e perceber que a realidade é Vazia e inexprimível.
O Bodhisattva deve pregar o Dharma da seguinte maneira: com humildade e vigor; sem entrar em disputas com outros monges e expressando-se de um jeito amável, visando beneficiar aos que venham até ele e estejam desejosos pela Doutrina.

Parte 2 – A Parábola do Rei Generoso

Havia um rei poderoso que conquistou por sua força vários reinos. Este rei vendo a fidelidade de seus soldados nas guerras resolveu os presentear com ouro, pedras preciosas, terrenos, casas, etc. Porém, a princípio não lhes deu a coroa, porque estes ficariam muito confusos, naquele momento, com este gesto.
Da mesma maneira o Tathagata, ao ver seus discípulos lutando bravamente contra Mara, primeiramente lhes dá os Veículos Inferiores e se salvaguarda, a princípio, de oferecer-lhes o Sutra do Lótus, que tem em sua essência o Veículo Único.
Contudo, assim como aquele rei, impressionado pela grande façanha viril de seus soldados, lhes deu depois até mesmo a coroa, Buda concede aos seus Discípulos (após um período “probatório” e de adaptação), a última e definitiva Exposição da Doutrina, que é semelhante a uma coroa, brindando a todos com a Onisciência.


Capítulo 14 – Surgimento de Bodhisattvas das Concavidades da Terra

Parte 1 – Bodhisattvas do Mundo Saha

Eis, então, que no meio da Assembleia surgem incontáveis Bodhisattvas Mahāsattvas de outros mundos se propondo a pregar o Sutra do Lótus no Universo Saha. Porém, Buda os repreende dizendo que dentro do Universo Saha já há uma quantidade muito maior de Bodhisattvas que podem realizar esta tarefa sem necessidade de ajuda alguma.
E ditas estas palavras pelo Bhagavant, o mundo Saha em todas as partes se fendeu e do interior daquelas rachaduras surgiram milhões de Bodhisattvas, mestres do Dharma, com corpos dourados e dotados das Trinta e Duas marcas virtuosas, que emergidos das concavidades da Terra prestaram homenagens por um longo tempo aos Tathagatas Prabhūtaratna e Shakyamuni.
E dentre aquela multidão de Bodhisattvas, encontravam-se quatro que estavam diante de todos, a saber: Vishishtacharitra (Excelente Boa Conduta), Anantacharitra (Infinita Boa Conduta), Vishuddhacharitra (Imaculada Boa Conduta) e Supratishthitacharitra (Completamente Firme Boa Conduta).
Estes quatro Bodhisattvas Mahāsattvas dirigem ao Bhagavant as seguintes perguntas:

“Goza o Bhagavant de boa saúde? Está livre de qualquer dor? Sente-se feliz? Mostram-se os seres em boa disposição, dóceis na instrução, fáceis de conduzir, dispostos a se deixar purificar? Não provoquem cansaço ao Bhagavant” (página 391 – K301).

Buda responde afirmativamente a todas as perguntas, dizendo que os seres que confiam em Sua Palavra se prepararam bem, sob a direção de Perfeitamente Iluminados do Passado. Estes seres são os Shravakas e os Pratyekabuddhas que agora encontram-se prontos para ouvir a Verdade Suprema.


Parte 2 – Dúvidas de Maitreya e outros Bodhisattvas

Maitreya e os demais presentes na Assembleia perguntam a Buda de onde vieram aqueles Bodhisattvas de tão excelente qualidade.
Shakyamuni responde que estes Bodhisattvas surgiram porque Ele os estimulou e os apresentou ao Caminho. Complementa dizendo que estes fieis, que brotaram das concavidades da Terra, são grandes homens, dedicados, que não gozam com a vida em sociedade; são independentes, ou seja, não apegados à vida mundana e também praticam a perseverança.
Maitreya se admira pela quantidade de Bodhisattvas alcançados por Shakyamuni em um curto intervalo de tempo, ficando em dúvida sobre como Buda realizou tamanha proeza. Porém, este questionamento só é respondido no próximo capítulo.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Introdução aos Ensinamentos de Sidarta Gautama, o Buda (5) - QUARTA NOBRE VERDADE

QUARTA NOBRE VERDADE

Caminho Óctuplo ou Caminho do Meio (O caminho que leva à cessação do sofrimento)

A Quarta Nobre Verdade é a que indica o Caminho que leva à extinção do sofrimento, conseguido pela trilha da Senda Óctupla, também conhecida como "Caminho do Meio", porque evita os dois extremos: primeiro, o da auto-indulgência, conforto e prazer físico que traz apego às paixões (é próprio dos indivíduos que procuram a feli­cidade através dos prazeres dos sentidos); segundo, o da auto-tortura, auto-mortificação, ou sofrimento físico que traz perturbação à mente: é uma psicose, mediante diferentes formas de ascetismo. Exemplo, o uso do cilício pelos penitentes cristãos. Nem o ascetismo, nem o prazer permitem realizar o Caminho. É preciso aban­donar esses dois extremos e seguir o Caminho do Meio.


Certa ocasião, Sidarta estava na Montanha dos Abutres junto à cidade de Rajagaha. Em um bosque próximo, um monge de nome Sona estava entregue à meditação; aplicava-se bastante, mas, não realizando a Iluminação e sentindo-se desnorteado, veio ter com Ele e per­guntou: 

- "Mestre, estou fazendo exercícios severíssimos. Dentre todos os discípulos, não há quem me iguale em zelo. Por que, então, não consigo realizar a Iluminação? Talvez seja melhor que eu volte para casa. Tenho bens que me permitem levar uma vida feliz. Não é melhor que eu abandone este caminho e volte ao mundo?
- Sona, antes de seres monge, eras um exímio harpista, não?
- Bem, eu tinha certa habilidade com esse instrumento.
- Então responde: quando as cordas da harpa estão muito tensas, obtém-se bom som?
- Não, Mestre.
- Quando as cordas estão frouxas, obtém-se bom som? 
- Também não, Mestre.
- Então, como fazer para obter bom som?
- As cordas não devem estar nem tensas, nem frouxas demais.
- O mesmo se dá com a prática do Dharma, Sona. A aplicação dema­siada traz inquietação à mente, e a despreocupação traz negligência. É necessário seguir o Caminho Médio entre esses dois extremos.
Desde então, Sona passou a exercitar-se segundo tais instruções, rea­lizando, por fim, a Iluminação."

Sidarta, tendo experimentado esses dois extremos e reco­nhecendo a inutilidade deles, descobriu por experiência própria o Ca­minho do Meio que condensa o espírito da Filosofia Ético-Moral budista, conhecido como Caminho Óctuplo, e consiste dos seguintes princípios: 

Conduta Ética - Moralidade
1. Palavra Correta 
2. Ação Correta
3. Meio de Vida Correto

Disciplina Mental - Meditação
4. Esforço Correto 
5. Plena Atenção Correta
6. Concentração Correta

Introspecção - Sabedoria
7. Pensamento Correto 
8. Correta Compreensão 

Estes oito fatores estão entrelaçados entre si e cada um contribui para o aparecimento e desenvolvimento dos outros. São estas as poderosas forças morais e mentais que, reunidas, nos ajudam a nos libertar do desejo. A finalidade destes oito fatores é facilitar o aper­feiçoamento dos três elementos essenciais no treinamento da disciplina budista, que são: 

I. Conduta ética: Moralidade (Sila)
II. Disciplina mental: Concentração e Meditação (Samadhi) 
III. Introspecção: Sabedoria (Panna)

I. Conduta ética: Moralidade (Sila)

É baseada na ampla concepção de amor universal e compaixão para com todos os seres; não somente os humanos, mas todos os seres vivos. 

Segundo o budismo, para que um ser humano seja o menos imperfeito possível, deve cultivar igualmente duas qualidades: compaixão e sabedoria, que devem permanecer inseparáveis. A compaixão inclui o amor no sen­tido universal (não condicionado a símbolos, conceitos etc.), a cari­dade, a tolerância, assim como todas as nobres qualidades do coração (lado afetivo); ao passo que a sabedoria representa as qualidades da mente. 

Se um indivíduo desenvolve somente o seu lado afetivo e descuida o lado mental, será um tolo de bom coração; se, ao con­trário, este mesmo indivíduo desenvolve seu lado mental e descuida o lado afetivo, é provável que se torne um intelectual insensível, frio, sem nenhum sentimento para com os demais. Desta forma, estes dois homens nunca alcançarão a menor imperfeição. A conduta ética, baseada no amor e na compaixão, consta de três fatores do Caminho Óctuplo: 1.°) Palavra Correta, 2.°) Ação Correta, 3.°) Meio de Vida Correto.

1º) Palavra correta, ou linguagem pura, é a que traduz hones­tidade, verdade, paz, carinho; que é cortês, agradável, benéfica, útil, moderada e sensível. Significa abstenção das mentiras, difamação, calúnia e de todas as palavras capazes de provocar ódio, inimizade, desunião e desarmonia entre indivíduos, ou grupos sociais. 

Abster-se de linguagem rude, brutal, descortês, ofensiva ou inju­riosa; enfim, abster-se de conversações sem sentido, fúteis e vãs; abster-se de linguagem errônea e perniciosa. Deve-se dizer a verdade em ocasião oportuna, empregando palavras amigáveis, benévolas, agra­dáveis, doces, significativas e úteis. Nunca falar negligentemente, mas sempre com conveniência de tempo e de lugar. Quando não se tem nada de útil a dizer, deve-se "guardar o nobre silêncio".

Para desenvolver a palavra correta, isto é, evitar as errôneas ma­neiras de falar, não basta apenas boa intenção, pois esta falha é cons­tante; é indispensável haver uma cultura mental que, desenvolvendo a concentração, leve o indivíduo ao autocontrole e à sabedoria interior. A palavra correta é dirigida pelo pensamento e ação corretos. "Melhor que mil palavras sem sentido, é uma só palavra sensata, capaz de trazer paz àquele que a ouve."

2º) Ação correta, ou conduta pura, tem por fim cultivar uma conduta moral honrada e pacífica e ajudar os outros na mesma finali­dade, a qual nos exorta, também, a evitar destruir vidas, fazer uso de tóxicos que perturbam a mente, ou fazem perder a consciência; roubar ou explorar, assim como o mau uso das relações sexuais.
"Aquele que destrói uma existência, que mente, que rouba, que cobiça o cônjuge alheio e se entrega às bebidas alcoólicas ou tóxicos em geral, este, já neste mundo, está destruído." A ação correta é dirigida pelo pensamento correto.

3º) Meio de vida correto, ou meios de existência puros, conduzem o indivíduo à aquisição do bem-estar material e espiritual próprios, ajudando os demais na mesma finalidade. Significa que se deverá evitar ganhar a vida em uma profissão ou ocupação que possa ser nociva a outros seres vivos, como comércio de armas ou instru­mentos mortíferos, caça, pesca e matadouros, bebidas alcoólicas, ve­nenos, entorpecentes, jogos que possam causar preocupações etc. Fazer profissão de poderes parapsíquicos, na cura de pacientes, previsões sobre o futuro baseadas em cartomancia, astrologia etc. 

O meio de vida correto é dirigido pelo pensamento correto. Quaisquer sistemas de moral e ética estão enquadrados nesses três aspectos: palavra correta, ação correta e meio de vida correto. Sem esses três fatores, nenhum desenvolvimento espiritual será possível.



II. Disciplina mental: Meditação (Samadhi)

Compreende os três seguintes fatores do Caminho Óctuplo: Es­forço Correto, Plena Atenção ou Vigilância Correta e Concentração Correta, por meio dos quais se alcança o desenvolvimento mental e a visão interior (intuitiva).

4º) Esforço correto, ou aplicação pura, é a arma que pos­suímos para enfrentar corretamente a luta contra o mal; consta do seguinte:

a) Esforço de evitar e destruir os pensamentos negativos já existentes.
b) Enérgica vontade de impedir ou superar o aparecimento de pensa­mentos maus e nocivos.
c) Fazer surgir pensamentos bons e sadios ainda não existentes.
d) Manter, cultivar e desenvolver, até à mínima imperfeição possível, os pensamentos bons e sadios já existentes.

5º) Plena atenção correta, ou Vigilância Correta, consiste numa atenção vigilante com tomada de consciência nas atividades do corpo, nas sensações, nos diferentes estados da mente (nas idéias, pensamentos, etc.), e na investigação da Doutrina - Dharma - ( Verdade sobre o nosso ser).

A Plena Atenção mental correta é um dos principais fatores do Caminho Óctuplo, pois é necessário que esteja presente para o desen­volvimento dos demais fatores. Desta maneira, para desenvolver a palavra correta, a ação correta e o meio de vida correto é necessária a Plena Atenção mental para que no momento exato não nos dei­xemos levar pelas errôneas maneiras de falar, pelas ações demeritórias, ou pelo incorreto meio de vida.

A Plena Atenção mental correta é chamada "Guarda da mente"; é o vigia da mente, que está sempre observando, porque a mente, por si só, vaga a todo instante.

No treinamento da meditação, a prática da concentração na res­piração, embora existam outras técnicas, é um dos exercícios mais divulgados em relação ao corpo, contribuindo para o desenvolvimento mental. Pela meditação realiza-se auto-disciplina, auto-controle e auto­-conhecimento - pureza e Iluminação (Sabedoria).
Quanto às sensações, é necessário ter clara consciência de todas as suas formas: agradáveis, desagradáveis e indiferentes; de como surgem, se desenvolvem e desaparecem.

No que se refere aos diferentes estados da mente, deve-se estar atento e analisar todos os movimentos mentais; se neles estão pre­sentes o ódio, ou não, a cobiça, ou não; se eles se deixam levar por uma ilusão, ou não, se a mente está distraída, ou atenta, e estar cons­ciente de como surgem e desaparecem. Enfim, quanto às ideias, pen­samentos e concepções das coisas, devemos distinguir sua natureza, saber como surgem, se desenvolvem e desaparecem, como são supri­midos ou destruídos, e assim sucessivamente.

6º) Concentração correta é a condição indispensável para todo e qualquer desenvolvimento espiritual. Qualquer religião ou prá­tica, sem concentração, torna-se frágil e, na oração, as palavras tornam­-se inúteis. Quanto mais concentração nas palavras de uma oração, mais poderosa ela se torna. A oração feita desta forma é um tipo de meditação. O poder dos raios solares dispersos em todas as direções se torna maior quando concentrados em um ponto por uma lente. Da mesma maneira nossa mente está constantemente dispersa; quando concentrada em um objetivo único, ela se torna poderosa e com isso desenvolve a sabedoria interior. 

A Concentração Correta é o terceiro e último fator da disciplina mental - samadhi -, estado em que o indivíduo é levado à abstração de si mesmo pelo treino da meditação nas quatro etapas de dhyana. 
Na primeira etapa de dhyana são afastados os desejos apaixonados, pensamentos impuros como sensualidade, má vontade, confusão, agitação e dúvida cética. Mas estão presentes os sentimentos de alegria, de felicidade, assim como certa atividade mental.

Na segunda etapa, desaparecem todas as atividades mentais e desenvolvem-se a tranqüilidade e a fixação unificadora da mente; no entanto os sentimentos de alegria e felicidade ainda estão conservados.
Na terceira etapa, o sentimento de alegria, que é uma sensação ativa, desaparece também, persistindo ainda uma disposição de felici­dade com equanimidade consciente.

Finalmente, na quarta etapa de dhyana, toda sensação, mesmo de felicidade ou infelicidade, de alegria ou pesar, desaparece, restando somente a equanimidade e a lucidez mental.


Recolhimento ou Concentração

- Nagasena, qual é a característica da concentração? 
- A supremacia. Os estados salutares da mente subordinam-se à con­centração. Esta é o cume do qual esses estados da mente são as encostas, as ladeiras e o sopé.
- Dá uma comparação.
- Quando um monarca mobiliza o seu exército para a guerra, os ele­fantes, os cavalos e a infantaria estão sob seu comando, obedecem às suas ordens. Dá-se o mesmo com a concentração.
Recomendou o Bem-Aventurado: "Religiosos e leigos, cultivai a concen­tração. O homem na concentração vê a realidade." 

Desta forma a mente fica disciplinada e desenvolvida por meio do Esforço Correto, Atenção Correta e Concentração Correta.

III. Introspecção: Sabedoria 

Consta dos dois fatores restantes da Nobre Senda Óctupla, o Pensamento Correto e a Correta Compreensão.

7º) Pensamento correto, ou pensamento puro, é o correto pensar com sabedoria, com equanimidade e contemplação. É o pen­samento dirigido no sentido da renúncia, do desapego, da compaixão, do amor universal, da não-violência, estendendo-se a todos os seres vivos. Desenvolvendo estas qualidades, eliminamos todo pensamento egoísta de apego, má vontade, ódio, violência ou crueldade, seja de ordem individual, social ou política, que é fruto da ignorância. O pensamento correto não aparece quando existem pensamentos ligados aos apegos dos sentidos.

"Tudo o que somos é resultado do que temos pensado (criação mental). Se um homem fala ou age com uma mente impura, o sofrimento acompanha-o tão perto como a roda segue a pata do boi que puxa o carro."

"Se o homem fala ou age com a mente pura, a felicidade o acompanha como sua sombra inseparável."

Donde se conclui que do nosso pensamento só colhemos bons e maus frutos. 
Os pensamentos corretos são interdependentes da compreensão correta. No seu discurso sobre o Amor Universal, Sidarta nos dá um ensinamento que auxilia a vencer os pensamentos negativos: utilizá-Ios como tema de meditação.

8º) Correta Compreensão é a compreensão que, pela contem­plação pura, permite reconhecer e penetrar na realidade da existência da insatisfação universal, criada pela desarmonia entre os seres e o mundo exterior. 
No budismo há duas formas de compreensão: a primeira forma de compreensão é a do conhecimento, memória acumulada, captação intelectual de um assunto, segundo certos dados etc. É designada pelo nome de "conhecer segundo...", que é o conheci­mento pelos conceitos; não é muito profunda. A compreensão verda­deiramente profunda denomina-se "penetração". Con­siste em ver uma coisa em sua verdadeira natureza, sem nome ou rótulo. Esta penetração só é possível quando a mente está livre de toda impureza e quando completamente desenvolvida na prática da meditação.

A compreensão pela visão interior é a mais alta sabedoria que o homem pode atingir, e somente através dela poderá realizar a Rea­lidade Última, que consiste na compreensão das coisas tais como são, sem condicionamentos. As Quatro Nobres Verdades as explicam cla­ramente.

Na Primeira Nobre Verdade, a natureza da vida, seu sofrimento, suas tristezas e alegrias, sua insatisfatoriedade, sua impermanência e sua insubstancialidade; devemos compreendê-la como fato claro e com­pleto. 

Quanto à Segunda Nobre Verdade, origem de dukkha, que é o desejo acompanhado de todas as paixões e impurezas, a simples compreensão não é suficiente; torna-se necessário afastar, eliminar, destruir a origem desse desejo.

Quanto à Terceira Nobre Verdade, que é a cessação de dukkha, o Nirvana, a Verdade Absoluta, a Realidade Última, precisamos com­preendê-la e realizá-Ia.

Em relação à Quarta Nobre Verdade, que é o Caminho que conduz à realização da Libertação, ou experiência do Nirvana, apenas o conhecimento do Caminho, por mais completo que seja, é insufi­ciente. Torna-se necessário segui-la e manter-se nele.

Sidarta afirma que aquele que vê qualquer uma das Quatro Nobres Verdades, vê também as outras. Assim, dizia: "Aquele que vê impermanência (dukkha) vê também a origem de dukkha, vê a cessação de dukkha e também vê o caminho que conduz à cessação de dukkha."

Esta resumida exposição apresenta um modo de vida que pode ser seguido, praticado e desenvolvido por qualquer indivíduo. É uma dis­ciplina do corpo, da palavra e da mente, sendo, assim, um auto-co­nhecimento e uma auto-purificação. Isto nada tem a ver com fé, crenças, orações, adorações, ou cerimônias. Neste sentido, não contém nada que possa ser chamado popularmente de "religião"; é um caminho que conduz à compreensão da Realidade Última, à liberdade, à felicidade e à paz, mediante a perfeição moral, intelectual e espiritual.

Nos países budistas há costumes e cerimônias simples. Elas, entre­tanto, têm pouca relação com o verdadeiro Caminho que Sidarta ensinou ser "pura ciência e filosofia", porém são úteis e válidas, até certo ponto, para satisfazer certas emoções e necessidades místicas dos povos.

Texto de Texto de Adalberto Tripicchio (adaptado)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Arqueologia da Violência

Este post é uma resenha do texto “Arqueologia da Violência” de Pierre Clastres que busca entender o porquê do comportamento violento e do espírito de guerra presentes na maioria dos povos ditos selvagens.

As comunidades primitivas nunca foram entendidas como verdadeiras sociedades pelo Velho Mundo, pois viviam em constantes guerras. A guerra, dentro do parâmetro “ocidental” de sociedade, é algo indesejável, algo a ser evitado. Já para os padrões primitivos, a Guerra parece ter uma dimensão universal. Nenhuma teoria que tente explicar o comportamento destes povos deve deixar de levar em consideração este papel fundamental da Guerra. Alguns discursos, ao longo da história, arriscaram algumas explicações, mas a maioria destas apresenta alguma inconsistência. Para Thomas Hobbes, por exemplo, os selvagens eram “pessoas sem governo”, uma vez que interpretava a violência dos selvagens como resultado da ausência de um Estado que claramente estabelecesse uma sociedade “civilizada”, com valores éticos, hierarquias, etc.


O discurso naturalista, por sua vez, diz que a violência tem raízes biológicas, desenvolvida pela aquisição e a caça. Assim, os caçadores por sua força se impunham diante de outras aldeias na tentativa de as dominar politicamente. Pierre Clastres discorda dessa visão, pois o caçador, segundo ele, não tem motivação outra a não ser saciar seu apetite e a de seus conterrâneos. A Guerra e a caça não podem ser sinônimos, pois não há agressividade na caça; tal pensamento seria uma redução, seria tentar dizer que o sociológico está contido no biológico. A Guerra primitiva se enraíza no ser social da Sociedade Primitiva, por sua universalidade, não por ser algo natural, mas cultural.

Já o discurso economista parte do pressuposto de que o mundo selvagem é infeliz por sua “miséria primitiva”. Segundo esse pensamento, a economia para a subsistência dos primitivos é uma economia de miséria que propicia a Guerra. A Guerra é então interpretada como consequência da escassez; um povo, extremamente subdesenvolvido optaria pelo confronto com um outro mais abastado, aos padrões marxistas de luta de classes. Esta visão também é rebatida pelo texto, pois a economia primitiva não sentia necessidade de acúmulos, se satisfazia com o estritamente necessário, ou seja, uma tribo dificilmente entraria em atrito com outra por razões econômicas. Uma comunidade em dificuldades de subsistir iria preferir usar o tempo caçando mais, ao invés de lutar contra terceiros.

O discurso relativo à troca de Claude Lévi-Strauss enfatiza a Guerra como fruto de interações sociais. A Guerra Primitiva é uma atividade sociológica: “as trocas comerciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas e as guerras são resultado de transações malsucedidas”. Nesta perspectiva, as relações comerciais surgem como uma Prioridade Ontológica. Levi, corrige depois o termo comércio por simplesmente “trocas” com o sentido de serem dádivas recíprocas e não operações comerciais, uma vez que as sociedades primitivas, como dito, procuravam produzir tudo o que necessitavam para não precisar negociar com ninguém, elas tinham orgulho da própria independência. Desta forma, não é mais o comércio que provoca a Guerra, mas a troca. A exposição de Lévi-Strauss define a Guerra como algo sem positividade, efeito do fracasso das trocas. Logo, para ele, a Guerra é um não-ser da sociedade, uma não essência. O autor afirma que a visão de Lévi-Strauss parece ser ingênua, uma vez que se a Guerra tivesse somente relacionada com a troca, os confrontos seriam raros, ou seja, haveria a dissolução do fenômeno guerreiro, e não é isso que os dados etnográficos e os relatos dos viajantes do Velho Mundo relatam; a Guerra para os selvagens era frequente. Logo, interpretar o ser social exclusivamente à troca é uma redução. Hobbes não considerava a troca e Lévi-Strauss não considerava a universalidade de Guerra, e ao situar troca e Guerra no mesmo plano sociológico, deu à realidade primitiva uma explicação simplista.

Há ainda um outro discurso que procura entender melhor a realidade dos selvagens relacionando a Guerra com a fragmentação em múltiplas aldeias. A Guerra, neste ponto de vista, não é o efeito da fragmentação, mas a fragmentação o efeito da Guerra; efeito e finalidade. Os povos primitivos desejam esta divisão, como uma vontade sociológica. Cada grupo tem sua unidade política, que se revela através de cerimônias, hábitos e costumes e estas características transcendem a variedade econômica. A aldeia então se caracteriza por um espaço exclusivo de direitos comunitários; colocando outros povos à margem, em exclusão. Ou seja, é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito exclusivo sobre um território determinado, como uma relação política dada na alteridade. A explicação é boa, porém parece ainda não responder a universalidade da violência, pois se os confrontos tivessem motivação apenas territorial/política, a Guerra teria somente caráter defensivo e é sabido que a maior parte das Guerras relatadas entre estes povos tinham motivação ofensiva.


Para aprofundar ainda mais o debate é preciso levar em consideração alguns detalhes que foram postos de lado até o momento, estabelecendo um contraste entre a Sociedade do Velho Mundo e a Sociedade Primitiva. Para os selvagens, não há divisão do trabalho (exceto pelo sexo), os indivíduos são polivalentes e não existem diferenças sociais tão discrepantes como as presenciadas nas sociedades modernas. Um selvagem não cultiva o desejo de acumulação de bens e posses e por esse motivo a desigualdade e exploração no meio primitivo não são tão evidentes. Ou seja, há um sentimento de completude e independência que é mantido por Leis internalizadas pelos membros numa Tradição. O texto conceitua este “sentimento” através do binômio Totalidade e Unidade. Na Totalidade se garante a autonomia e na Unidade a igualdade. O chefe ou líder não fala por si, mas em nome da manutenção deste binômio, na tentativa de se manter Leis que são, na maioria da vezes, Leis Míticas (Lei Ancestral) que representa o SER de sua sociedade. Os integrantes dessas tribos incorporam este sentimento e desejam assegurar o controle de seu território sob o signo da Lei Ancestral, responsável por sua indivisão; neste contexto, o Outro (aldeias vizinhas) tem a função de atuar como um “espelho” que reflete a própria Unidade e Totalidade de uma comunidade. A diferença absoluta revela a igualdade entre os membros e a autonomia do clã. Por essa razão a Sociedade Primitiva é fragmentada e destacada pela multiplicidade, cada tribo zela por sua integridade e pela continuidade da tradição mítica através das gerações. Por este ângulo é fácil perceber que o equilíbrio entre as comunidades, por razões “ideológicas” e culturais, seria instável, na relação entre estes povos. A Sociedade Primitiva recusa-se em identificar-se com os outros, por isso usa de violência para garantir a imutabilidade de seu status-quo.

Assim, a hipótese da amizade generalizada de Lévi-Strauss seria impossível, seja pela distância espacial quanto “ideológica”. O selvagem é irredutível e desconfiado quando obrigado a relacionar-se com o Outro. O que dizer então sobre a hipótese da hostilidade generalizada proposta por Thomas Hobbes? Também não corresponderia a verdade, pois nessa ótica o resultado fatalmente seria o de dominação de uma tribo por outra, não haveria a multiplicidade, mas a prevalência de uma cultura. A universalidade da Guerra nas Sociedades Primitivas é um fato, porém falar em Guerra constante é uma precipitação, existiam momentos de paz também.

Apesar das teorias destes pensadores não serem completas, a verdade parece surgir na justaposição dos dois pontos de vista, sendo a Sociedade Primitiva fruto de trocas e de guerras, mas que se desenrolam em planos distintos. As trocas poderiam ser colocadas em termos de alianças: o Outro, nessa visão, não é necessariamente o inimigo, mas também um amigo em determinado contexto. Essa aliança não tem fidelidade eterna, sendo passível de rompimento e traição. A Aliança surge apenas como uma tática de Guerra para a preservação da autonomia da tribo, somente um meio e não o fim; portanto, há a prevalência da Guerra sobre a Aliança, e aquela está imediatamente inscrita no funcionamento dessas comunidades.


A esfera da troca é a Aliança e esta acontece, por exemplo, em forma de convites sociais, presentes sem fins econômicos e até no oferecimento de mulheres. O matrimônio nessas comunidades funciona como Aliança político-militar, com o intuito de unir as tribos com laços familiares. Lévi-Strauss disse que a Sociedade primitiva era uma sociedade de trocas, contudo, na verdade estas comunidades buscavam reduzir ao máximo a prática de trocas. A troca só existe para que haja a Aliança, e esta é apenas uma estratégia de Guerra. Uma Guerra pode acontecer por vários motivos, um dos motivos mais comuns era devido às mulheres. Nesse caso havia a necessidade de garantir esposas suplementares para que a reprodução na aldeia não cessasse; um conflito com este fim acontece quando não há vantagens na troca ou quando esta se torna inviável.

Então, a função da Guerra e a Aliança era garantir a Totalidade e a Unidade, ou seja, manter a autonomia da aldeia intacta. A troca nessa perspectiva é um mal necessário. Se tudo fosse Guerra, como defendia Hobbes, não haveria a troca, principalmente troca de mulheres. O estado de Guerra entre os grupos torna a busca da Aliança imprescindível.

Enfim, a Guerra não se dá por especificidade zoológica, concorrência vital, nem por trocas mal feitas, mas sim porque é um comportamento universal das Sociedades primitivas que enxergam o Outro como diferente e, assim, buscam defender suas autonomias. Por essa razão sempre há a possibilidade da Guerra. O estrangeiro é quase sempre o inimigo ou no máximo um aliado o qual deve-se desconfiar. Essa autonomia é inscrita por um tipo de conservadorismo/tradição baseado principalmente em Leis Ancestrais e Míticas. A Guerra é um dispositivo para impedir mudanças e é o verdadeiro motor das vida social. Se uma comunidade se mostra incapaz de manter sua autonomia, acaba destruída por outras, por isso a capacidade guerreira é uma condição indispensável de autonomia.

A Sociedade Selvagem é do múltiplo e não do um. Não deseja senhores, quer autonomia e despreza leis exteriores, portanto, rejeita a ideia de Estado. O Estado dividiria internamente, enfraqueceria a autonomia e limitaria a liberdade do clã. O anseio da Sociedade Primitiva é a fragmentação externa, ao mesmo tempo em que zela pela indivisão interna; a Guerra é o dispositivo que garante a realização deste desejo. Estas comunidades são contra o Estado na medida em que são sociedades para a Guerra.
Hobbes acertou quando disse que os primitivos são contra o Estado e que Estado e Guerra devem ser pensados numa relação excludente, mas errou em dizer que os selvagens não poderiam ser classificados como uma real sociedade devido ao comportamento violento. O mundo selvagem é social sim, mas não nos padrões de Sociedade definidos pelo Velho Mundo.

Esta questão da alteridade é evidenciada em torno de toda a problemática apresentada por Pierre Clastres. Primeiramente o conceito de Sociedade normalizado pelo entendimento europeu, no pensamento de Hobbes, é usado para definir quem é ou não sociedade, num típico preconceito etnocentrista-primitivista que julga povos espacialmente e temporalmente distantes como modelos subdesenvolvidos de cultura.

Num segundo momento, o autor mostra um tipo diferente de alteridade entre as tribos que são separadas espacialmente, mas são contemporâneas. O Outro, meu vizinho, na ótica dos primitivos é apresentado como essencial para a autonomia das tribos. A diferença absoluta aparece como determinante na afirmação da Totalidade e da Unidade e para a preservação das tradições que garantem a identidade de um clã. Por essa razão a Guerra está em relação direta com a alteridade, a Guerra dispersa, separa, evita a “contaminação” de uma cultura por outra, mantendo uma sociedade com os mesmos valores e costumes ensinados pelos ancestrais.

Por fim, Pierre tenta salientar comportamentos primitivos que poderiam ser considerados mais “civilizados” do que o próprio comportamento dos “civilizados do Velho Mundo”, tentando desfazer o ideal de homem apresentado pela filosofia aos moldes de Kant e Descartes. O sentimento de completude nas Sociedades Primitivas não concorda com a loucura da acumulação moderna. Os primitivos se sentiam completos tanto espiritualmente quanto materialmente, trabalhavam apenas para a subsistência e valorizavam o tempo ocioso e de lazer. Não viviam numa miséria primitiva, como advoga o discurso economista. Estes povos não desprezavam os ensinamentos ancestrais, não caíam na armadilha de julgá-los obsoletos, nem preocupavam-se em evoluir cientificamente e intelectualmente numa inglória “busca pela verdade” sem fim; não tinham grandes pretensões de progresso contínuo ou de estender seus os domínios em larga escala. Enfim, se contentavam com sua própria realidade e não desejam SER nada além do que já ERAM.

Se ao mesmo tempo o comportamento violento parece ser um escândalo para os “civilizados”, por outro lado, o uso do tempo e o sentimento de completude poderiam servir de exemplo para as sociedades contemporâneas cada vez mais ansiosas e mentalmente perturbadas.

Bibliografia:

  • Clastres, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify, 2011.