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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Uma reflexão sobre a Alma - Aristóteles

“De Anima” de Aristóteles – Livro I

Aristóteles, no livro I do “de Anima” [1], propõe uma discussão sobre a importância do tema Alma e as dificuldades na abordagem deste assunto. 
A maioria das pessoas pensa que discorrer sobre a Alma é uma perda de tempo, pois a Alma não é algo palpável ou detectável aos sentidos. Muitos, principalmente os céticos, julgam qualquer pensamento que transcenda a física como apenas fruto de conjecturas e abstração, classificando esse tipo de conhecimento como vão. Há ainda aqueles que defendem que o tema está somente vinculado à espiritualidade ou à religião e que tudo a respeito da Alma só pode ser aceito por meio de fé ou superstição e nunca por uma via demonstrativa ou filosófica. Estes pontos de vista são facilmente desconstruídos se analisarmos a história da filosofia e do pensamento, tanto no Ocidente, quanto no Oriente. No Oriente as maiores contribuições com repeito a Alma são oriundas da metafísica das “religiões” locais, a exemplo do Brahmanismo (Hinduísmo) e do Budismo, que definem basicamente a Alma como única em todo o universo; uma “substância coletiva” à lá Spinoza, que foi interpretada equivocadamente como panteísmo pelos modernos. Para o oriental, em suma, há uma relação entre Alma e corpo, elas não são a mesma coisa, mas também não são separadas [2].

“Eu não ensino que exista algo chamado velhice e morte e que há alguém a quem eles pertençam. Se alguém sustenta a visão de que jiva (princípio da vida, alma) é idêntico ao corpo, em tal caso não há vida santa. Se alguém sustenta a visão de que jiva é uma coisa e o corpo é outra, nesse caso então a vida santa é impossível.”
Saṁyuta Nikāya XII,35 – Literatura Budista [3]


Do pensamento Grego à modernidade, é possível verificar muitos pensadores ocidentais que se esforçaram em definir a Alma e de, inclusive, classificá-la quanto a suas características e atributos. Aristóteles mesmo, na segunda parte do livro I da obra citada, enumera vários filósofos ocidentais, apontando contradições e tentando, a partir do que já foi dito sobre o tema, construir seus argumentos. De modo avesso ao entendimento oriental, uma parte considerável dos ocidentais costumava classificar os entes como constituintes de almas distintas (uma para cada ser); apesar dessa convergência, o Livro I da obra analisada enumera também diferenças, separando os ocidentais em três grupos: (a) aqueles que definiam a Alma a partir do movimento, (b) aqueles que a definiam a partir da potencialidade de conhecimento e da distinção entre seres animados ou não e (c) aqueles que julgavam a Alma um ente sem massa que se infunde à matéria.

Essas tentativas buscam basicamente um mesmo objetivo, que pode ser sintetizado pela afirmativa de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Todos esses pensadores perceberam que parece existir algo universalmente responsável pela vida, pela propulsão do movimento e pela agregação e desagregação da matéria sob diversas formas, pois de outro modo não existiriam os seres e tudo seria amorfo. A palavra animação deriva de Anima, que é a Alma; este “estopim da vida”, pelo seu caráter universal e, portanto, Metafísico, não pode ser demonstrado matematicamente e não pode ser reproduzido experimentalmente ao bel prazer como um fenômeno natural qualquer, ou seja, não pode ser avaliado com uma certeza absoluta. Mesmo em meio a estas enormes incongruências, os filósofos não desistiram de abordar o assunto. Aristóteles afirmava, mesmo diante destas complicações, ser possível dizer algumas coisas sobre a Alma e, ainda por cima, com um bom nível de certeza; segundo ele, refletir sobre os seres animados se faz necessário, é um princípio comum, e os resultados advindos dessa construção Metafísica podem contribuir para que o homem conheça melhor a vida que o circunda e também a si mesmo, fazendo valer, assim, a assertiva de Delfos [4].

A Metafísica é essencialmente o conhecimento do universal, ou, dos princípios de ordem universal. É impossível dar uma definição melhor que esta, em razão dessa universalidade mesma que é sua primeira característica e aquela da qual derivam todas as outras. Na Realidade, só o que é limitado pode ser definido, e a metafísica é, ao contrário, na sua própria essência, absolutamente ilimitada. Os conhecimentos das ciências naturais estão limitados à experiência, enquanto que a Metafísica é constituída por algo do qual não há nenhuma experiência: sendo “além da física”, não podendo estar, desta maneira, submissa a nenhum grau de mutabilidade e influência de épocas e lugares. O contingente, o acidental e o variável, são pertencentes ao domínio individual e apresentam-se em múltiplas modalidades, não são, portanto, universais. Quando se trata da Metafísica, o que se pode mudar com os tempos e os lugares são apenas os modos de exposição, ou seja, as formas mais ou menos exteriores com as quais a metafísica pode ser revestida e que são suscetíveis de diversas adaptações. Entretanto, essencialmente, a Metafísica sempre permanece perfeitamente idêntica a si mesma, porque seu objeto é essencialmente uno e além de qualquer mudança. A Metafísica utiliza-se de palavras, mas é na realidade inexprimível, por comportar a Essência, é algo que cada um pode conceber somente por si mesmo, com a ajuda de palavras e símbolos que servem simplesmente como ponto de apoio para a sua concepção; a compreensão de uma doutrina metafísica será mais ou menos completa e profunda segundo a medida em que uma pessoa, meritocraticamente, a conceber efetivamente. A Metafísica não recorre a qualquer meio externo de investigação, mas sim à introspecção e à Intelectualidade, e pode ser conhecida por homens de todas as épocas, contanto que estes busquem e amem a Verdade, colocando-a acima dos próprios desejos pessoais ou necessidades de consolação.


Aristóteles difere Intelecto da razão, o Intelecto é aquilo que possui imediatamente o conhecimento dos princípios. O pensador declara expressamente que “o Intelecto é mais verdadeiro que a ciência, isto é, que a razão constrói a ciência, mas que nada é mais verdadeiro que o Intelecto”, já que este é necessariamente infalível por sua operação ser imediata, praticamente intuitiva, e, não sendo realmente distinto de seu objeto, ele forma um só corpo com a própria Verdade. Tal é o fundamento essencial da certeza metafísica; vê-se por aí que o erro só pode ser introduzido pelo uso da razão, porque a razão, diferentemente do Intelecto, é falível por consequência de seu caráter discursivo e mediato [2].

“Acontece que a doutrina da alma é como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da Verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contemplação aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados.”
Conimbricense – Sobre os Três Livros “da Alma” de Aristóteles [4]

Estudar a Alma é estudar a Essência dos fenômenos. Os fenômenos nada mais são do que acidentes ou consequências de uma causa primeira e hierarquicamente superior, que é a Alma. No ser humano, a Alma, segundo o discípulo de Platão, é aquilo que provê, além da vida e o movimento, os sentimentos e o intelecto; sendo que as funções intelectuais e sensitivas, ultrapassam a matéria e as condições do corpo. É a Alma quem imprime a forma aos corpos: forma humana para os humanos, animal para os animais e vegetal para os vegetais, é ela quem define o gênero ao qual um ser pertence. O ser individual é encarado como um composto de dois elementos, matéria e forma; esses dois elementos são em suma a essência e a substância da individualidade. O termo forma designa a “Essência Individual”, a forma não é exclusivamente a forma corporal, mas para além disso é também o conjunto inerente de potencialidades e características de um ser de uma determinada espécie. Logo, a Alma domina o sensitivo e o material. Atos da vontade, por exemplo, amar e querer são considerados operações superiores, em ordem de importância, aos atos dos sentidos e do apetite e aqueles (os superiores) são capazes de controlar estes (os inferiores). É neste contexto que o “de Anima” elenca os assuntos filosóficos, da mesma maneira, em uma sequência hierárquica, ou seja, em graus de Nobreza. Os fenômenos “acidentais” e físicos, provenientes da matéria, seriam assuntos menos nobres do que assuntos Metafísicos - a “ciência” da Essência é mais Nobre que as demais ciências. Seguindo o mesmo pensamento, Aristóteles ainda elenca graus de dificuldade em se obter conhecimentos exatos e satisfatórios das “ciências”; quanto mais ligadas aos fenômenos naturais, à lógica “objetiva” e à percepção dos órgãos dos sentidos, mais fácil é obter um elevado grau de certeza, já quanto mais próximo um assunto for da Essência, maior será seu grau de dificuldade e de entendimento. Ou seja, Nobreza e facilidade de entendimento são inversamente proporcionais.

Ciente desses percalços inerentes a uma filosofia metafísica, o pensador grego arrisca-se em definir a Alma e determinar o gênero a qual esta pertence. Ao longo dos livros do “de Anima”, pronuncia-se se a Alma é uma substância, se pode ser classificada em termos de quantidade e qualidade, se pertence aos seres em potência ou se é um tipo de ato, se é divisível ou indivisível e se é igual em todos os seres. Procura compreender as funções da Alma quanto a sua faculdade perceptiva, se o sensível vem antes do perceptível, se as afecções da alma precisam ou não do corpo, difere ainda tipos de movimentos (internos ou externos) e qual deles é oriundo da Alma, quais são os efeitos da corrupção do corpo nas faculdades perceptíveis, se a Alma é imortal, se pode subsistir separada da matéria, etc. Obviamente as conclusões alcançadas não tem caráter demonstrativo pelo próprio perfil do que está sendo estudado, contudo, são apresentados argumentos verossímeis, visando construir um sólido e lógico conhecimento. [4]


Enfim, apesar do tema Alma não ter a mesma exatidão de outras áreas do conhecimento, é possível se obter, através de uma Metafísica baseada na “Intelectualidade Pura”, algumas certezas sobre o assunto. Os filósofos, tanto orientais quanto ocidentais, ao perceberem que havia um elo capaz de animar a matéria, movimentá-la e uni-la, gerando assim, entes e seres; concluíram que a Alma é um princípio de organização que não pode estar reduzido à matéria. Ou seja, a Alma é uma capacidade imaterial.

Aristóteles já dá uma pista neste Livro I de que há “hierarquias de Almas”, elegendo o intelecto e a vontade, pertencentes exclusivamente à Alma Humana, como potencialidades de uma Alma mais desenvolvida em relação aos animais e vegetais. Prega, seguindo o raciocínio, a existência de uma hierarquia semelhante nas ciências: a “ciência da alma”, por seu perfil universal e Metafísico, ganha o peso máximo de Nobreza, pois está diretamente conectada ao ideal filosófico do “conhecer a si mesmo”; é um conhecimento útil, pois permite ao homem alcançar de maneira mais eficiente a Verdade. Por outro lado, afirma que quanto mais Nobre um assunto for, maior é a dificuldade de compreensão, exigindo do estudioso maior poder de investigação e inteligência. Os céticos acusam a Metafísica de ser somente fruto de abstrações e conjecturas que não garantem nenhuma certeza e que sem essa “exatidão mínima”, requerida para se construir uma argumentação “pé no chão”, não vale a pena debruçar-se sobre um determinado tema. Aristóteles, por sua vez, mesmo admitindo as dificuldades em se fazer Metafísica e apresentando a tese de que nem todo objeto apresenta o mesmo grau de inteligibilidade, defende a importância de se estudar todos os assuntos, inclusive os “além da física” e que este esforço é imprescindível na busca pela Verdade.

Bibliografia:

1. Aristóteles. De Anima (Sobre a Alma). Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 2010;
2. Guénon, R. Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus. São Paulo. Editora IRGET. 2014;
3. The Book of the Kindred Sayings, tr C. A. F. Rhys Davids & F. L. Woodward, 1917.  Pali Text Society, Bristol;
4. P. Manuel de Góis, Mário S. de Carvalho, Maria da Conceição Camps. Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus Sobre os Três Livros do Tratado 'Da Alma' de Aristóteles Estagirita. Lisboa. Edições Sílabo. 2010.

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