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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sócrates e a Justiça


Antes de começar o artigo, um comentário: Sócrates me representa!!



1) Górgias 479d/480a
Sócrates: “Qual era então, meu amigo, a questão sobre a qual nós não estávamos de acordo? Era acerca de Arquelau: tu dizias que ele era feliz, ainda que ele tivesse cometido as maiores injustiças e não tivesse recebido nenhuma punição. Eu pensava justamente o oposto: se Arquelau, ou não importa quem, faz um ato injusto sem ser punido, ele está destinado a viver em uma infelicidade que ultrapassa amplamente a dos outros homens. Eu sustentava também que aquele que a comete é sempre mais infeliz que aquele que a sofreu e que o culpado que não é punido é mais infeliz do que o culpado que é punido;
Polos: sim;
Sócrates: ora, então está demonstrado que o que eu dizia era verdade.
Polos: sim, é o que parece…”

2) Górgias 483c:
Cálicles: “…Quando dizemos que é injusto e vil termos mais do que a maior parte das pessoas nos exprimimos segundo a lei. Ora, ao contrário, é evidente, acho eu, que a justiça consiste em que o melhor tenha mais do que o pior e o mais forte que o menos forte. Isso ocorre por toda a parte, é isso que a natureza ensina, em todas as espécies animais, em todas as raças humanas e em todas as cidades. Se o mais forte domina o menos forte e é superior a ele, eis aí o signo de que isso é justo…”

A Justiça e a Felicidade

Os diálogos platônicos, muito voltados à moral e a política, geralmente relatam como se desenrolavam os debates entre Sócrates e os sofistas. Estes debates, que se utilizam do método dialético, na maioria das vezes terminam em um impasse, ou seja, sem um claro vencedor. 
A posição de Sócrates mantém uma linha comum nos diálogos: o filósofo percebe que os chamados especialistas, na verdade não fundamentam tão bem o que dizem dominar. Sócrates ainda sustenta que é preciso discutir sobre as virtudes humanas, mas não através de uma discussão teorizada, mas sim voltada à práxis, ou seja, a virtude vista como uma forma de conhecimento fundamental à vida em sociedade, que está associada diretamente ao agir; sendo assim, aquele que conhece a virtude não tem como agir em desacordo com ela.

O Logos, isto é, a articulação dos sentidos na fala, é a ferramenta do método dialético. A dialética é uma forma de diálogo que envolve certas regras: assume-se um ponto de partida que reproduz uma série de conexões; através destas conexões os argumentos são construídos de acordo com o engajamento do interlocutor na conversa.

Os sofistas sustentavam ser sempre possível contrapor um Logos com outro Logos de mesma magnitude. Já na visão de Sócrates, a virtude é impossível de ser contra-argumentada e é uma verdade (Logos) una. Desta maneira, o conhecimento da virtude oferece total discernimento à pessoa frente a qualquer situação de sua vida. Saber o que é uma virtude implica não defini-la a partir de exemplos, mas apresentá-la como definição que por si só explique o que ela é (conhecimento “à priori”); é, na linguagem de Platão, conhecer o conceito de maneira inteligível.
Uma vida feliz significa a melhor maneira de se viver; de acordo com Sócrates, esta felicidade deve estar em acordo com a justiça (identificada por ele como uma virtude). Porém, sofistas como Trasímaco, no primeiro livro da República de Platão, por exemplo, advogam que o bom é ser injusto, valendo-se da lei do mais forte.

Neste contexto, a filosofia da moral se inicia com a seguinte pergunta: há alguma razão para advogarmos que uma vida justa nos traz alguma vantagem na vida? 
Glauco, tentando responder esta questão, retoma a visão de Trasímaco, propondo o mito do anel de Giges. Neste mito, o anel concede invisibilidade a quem o coloca, sendo assim, o dono do anel pode agir ao seu bel prazer sem ser identificado. Com efeito, o sofista defende que, se as pessoas fossem invisíveis à vigilância, fariam apenas o que acham justo para si e pouco se importariam com a coletividade. Desta forma, a justiça seria apenas uma convenção criada pelos fracos, para que ninguém faça ou sofra injustiça e para que o forte não predomine e subjugue os demais. Logo, nesta visão, o detentor do poder não faria voluntariamente um acordo com o mais fraco, pois isso o impediria de agir conforme sua vontade e, consequentemente, de ser feliz. Por outro lado, Sócrates tenta demonstrar que há fundamentação e necessidade racional intrínseca na ideia de justiça.

Nos parágrafos do diálogo Górgias analisados nessa dissertação, é citado na parte 1 um trecho da conversa entre Sócrates e Polos, enquanto que na segunda parte, um outro sofista chamado Cálicles intervém e retoma o argumento de Polos. Antes disso, porém, há um diálogo entre Sócrates e Górgias, em que este dá respostas evasivas àquele a respeito das qualidades da retórica, não tendo êxito ao defini-la.

A retórica para Górgias é a arte de convencer os outros de sua posição (o bem seria a capacidade de comandar o outro pelo poder do convencimento, independentemente do que se quer convencer), além disso, o sofista também acreditava ser possível separar a retórica (técnica) do conceito de justiça, conceito este que se perdeu com tempo, principalmente após o advento da fala e da razão. Sócrates, mais uma vez fazendo a contraposição, diz que se a retórica fosse realmente uma arte, não poderia ser utilizada nunca para promover a injustiça. Com efeito, Sócrates critica o fato de que a justiça, para os sofistas, não tenha natureza própria, podendo ser “produzida” pelo discurso, o que constrói uma concepção falsa de que não há justiça fora do discurso. Disso se segue que os retores, então, criam o que lhes parece justo, mas desconhecem a justiça em sua essência. Logo, se a retórica fosse de fato uma arte, quem se utiliza dessa técnica deveria obrigatoriamente ter o conhecimento do justo e não poderia em nenhuma hipótese fazer mau uso dessa “arte”.  Disso se segue que, se uma pessoa conhece a justiça não age de modo injusto. Os retores têm o poder de persuadir sobre a aparência de justiça, porém na verdade não sabem o que é justo. Disso se entende que, a retórica não preenche os requisitos de uma arte. Por outro lado, o justo produz um bem de fato e não apenas uma aparência de bem e a vida bem-aventurada seria dotada de uma natureza moral.

Após esta primeira conversa, Polos assume o lugar de Górgias, complementando o discurso anterior, defende os oradores e ainda por cima afirma que na prática os injustos são mais felizes, pois são mais bem-sucedidos, têm mais dinheiro e poder; ilustra seu argumento com a história de um tirano que pouco se preocupa com a justiça, mas têm liberdade e o próprio reino aos seus pés. Todavia, para Sócrates, o orador apenas é um bajulador, que fala o que as pessoas querem ouvir e não o que elas precisam ouvir, além disso, rebate argumentos baseados em exemplos, não os aceitando como provas racionais.

Sintetizando o pensamento de Polos, pode-se dizer que este declarava que a justiça não é um bem em si mesma, que as pessoas só são justas quando não são vistas e que é melhor não sofrer a injustiça do que praticá-la. A justiça até poderia ser considerada boa (num sentido “meramente” moral), contudo o bem maior seria a felicidade, mesmo que para obtê-la fosse preciso exercer o poder de modo iníquo. Já o pensamento socrático prega exatamente o oposto: a justiça como meio para a boa vida. Ou seja, a justiça é um bem de fato, sendo assim, cometer uma injustiça seria pior do que sofrê-la (é uma causa de infelicidade), mas pior ainda seria cometer uma injustiça e não ser punido, pois, como a justiça é um mal, ela deve ser corrigida para que não se multiplique. Se o justo é sempre belo, assim também são as punições e castigos justos. Com efeito, se se aceita a justiça como um Bem real se segue que: quem sofre a injustiça não tem culpa por tê-la sofrido, mas quem a comete, faz premeditadamente um mal; não ser punido pela injustiça é um mal ainda maior, pois a não punição, nada mais é do que mais um ato de injustiça. Então, quem sofre a injustiça participaria de uma relação involuntária, já quem a comete, estaria utilizando-se de seu poder de modo perverso voluntariamente. Quando não há o claro conceito de justiça, a aparência do bem encobre o verdadeiro Bem e o desejo sobrepõe-se à vontade. O poder verdadeiro é querer, não desejar, um Bem para si; se o tirano não tiver bom senso, sua retórica pode ser não só uma arma que causa sofrimento aos demais, mas também para si mesmo.

Cálicles então assume o lugar de Polos, pois este se contradiz. Polos acaba aceitando a premissa de que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la, ao assumir isso, reconheceu que haveria “algo substancial” na definição de justiça e acabou dando a razão para Sócrates.

Cálicles defende uma opinião muito parecida com a defendida por Trasímaco e Glauco na obra República de Platão. Para ele, a justiça não é propriamente uma virtude; só tem um valor público e não é um bem conforme a natureza. Esta posição pode ser comparada a um amoralismo, pois sustenta que aqueles que acreditam que a justiça é um bem estão enganados. O discurso de Cálicles pode ser dividido em quatro partes:

1. Causas da contradição de Polos;
2. Oposição entre o que é belo segundo a natureza e segundo a lei;
3. O valor relativo à filosofia;
4. Conselho a Sócrates.

Cálicles inicia seu discurso demonstrando que Polos, com medo de desafiar a verdade e dizer o que pensa, acaba aceitando que há substancialidade na justiça e confundido pelo discurso desonesto de Sócrates, comete contradição. 

Na segunda parte, retoma a ideia de 2 sentidos de bem, o bem relativo a nomos (lei) e o bem conforme a natureza. Segundo a ordem da natureza o que é vil e mau é sofrer a injustiça e o que é bom é ter poder, ser forte. Entretanto, segundo a lei, bom é ser justo, sendo que esta justiça foi uma criação da coletividade para se conter o domínio dos fortes; ser mau estaria relacionado à desigualdade. Os argumentos que sustentam a posição do bem conforme a natureza se baseiam em que o mais forte tem mais poder de fato e que a experiência cotidiana mostra isso.

Na terceira parte, que está relacionada diretamente com o parágrafo citado na primeira página, Cálicles julga haver uma idade certa para se fazer filosofia e que não abandoná-la em época oportuna causa imaturidade, impede o homem de ser notável e traz ingenuidade em relação à vida política e prática. Sendo assim, a filosofia feita “fora de hora” seria uma subversão da natureza.

Na última parte do discurso o sofista aconselha Sócrates a parar com a “brincadeira da filosofia” enquanto é tempo, pois isso poderia lhe trazer consequências ruins. Motiva-o a aprender a retórica para que se acostume à convivência na cidade e para que aceite as “leis da selva”.

Sócrates refuta o discurso de Cálicles desenvolvendo a ideia de que a vida “segundo a natureza” seria a de se escolher bens que na verdade são males para a própria pessoa. O querer seria a vontade daquele que conhece a virtude, já o desejar, consequência da ignorância daqueles que julgam a satisfação da vontade egoísta como o verdadeiro bem. Esta concepção teria apenas a aparência de bem, mas seria de fato nociva, não só aos outros seres, mas também, em longo prazo, à quem a adota. O filósofo exalta a ideia de justiça como fundamental para que haja um bom modelo de sociedade, desenvolvendo um tipo de coerência capaz de conciliar as consequências do ponto de vista do indivíduo e do ponto de vista do coletivo na aceitação da justiça como um Bem. Ainda chama a atenção para a importância do exame racional na vida das pessoas, como um método de vital importância que as levaria cabalmente ao verdadeiro conceito de justiça, ou seja, aponta para a razão como um meio de acesso que, quando bem usada, culmina na compreensão da verdade. E, finalmente, argumenta que mesmo com a experiência natural mostrando uma suposta realidade, é possível ao homem repensá-la e percebê-la em sua essência.

Enfim, foi visto no diálogo entre Górgias e Sócrates, que a retórica pode ser mal utilizada, pois, para os sofistas, esta seria apenas uma técnica desassociada com o conceito essencial de justiça e, portanto, passível de ser usada para a promoção da injustiça. Já para Sócrates a justiça se encontra no interior da vida, ou seja, faz parte da natureza humana. Górgias até admite a existência de um bem real, contudo, após a prática de articulação de palavras pelo ser humano, o justo e o injusto tornaram-se ficções.

Polos diferencia justiça de felicidade, e, apesar de reconhecer que ambos são bens, acredita que o bem em seu sentido mais amplo é a felicidade, acima, inclusive, da justiça. Logo, é possível justificar um ato injusto em nome do prazer.

Cálicles e Trasímaco afirmavam que sempre quando alguém tem o poder de cometer injustiça sem ser descoberto, esse alguém o fará, sendo assim, a justiça seria meramente uma convenção dos mais fracos para persuadir os mais fortes. Na minha opinião, esta visão rebaixa o homem como um eterno refém de suas próprias vontades naturais e incapaz de não querer satisfazê-las. Compactuo com a opinião de Sócrates, de que o homem em posse do Logos é capaz de sobrepujar-se às suas inclinações naturais e egoísticas, com o objetivo de construir uma sociedade que por mais utópica que possa parecer, tente reunir e ponderar interesses individuais e coletivos. Aqueles que sinceramente se utilizam do Logos, chegarão inevitavelmente à necessidade da justiça para que este tipo de conciliação de interesses, imprescindível para a própria subsistência da nossa espécie, ocorra. Com efeito, a razão em seu estado mais sincero, algo também natural ao homem e o que o diferencia dos demais seres, parece se comprazer não só na satisfação de desejos próprios mas também parece querer que a boa vida também atinja aos demais.

Os sofistas em seus exemplos atribuíam a felicidade a fatores externos, já Sócrates parece advogar a Felicidade da Alma, que se constituiria em não apenas garantir os próprios interesses, mas ser feliz também em ver a coletividade funcionando em harmonia.

“Mas, se ele mesmo, ou alguém por quem se interesse, vier a praticar alguma malfeitoria, será preciso ir, por vontade própria, onde possa ser castigado o mais depressa possível, a saber, ao juiz, como iria ao médico, esforçando-se para que a doença da injustiça não se torne crônica e venha a transformar-se numa úlcera incurável da alma.” 
Sócrates.

Por mais clichê que isso pareça, a Felicidade da Alma é aquela que te faz colocar a cabeça tranquilamente no travesseiro ao final do dia. É aquela oriunda da autoinspeção diária, que motiva o exercício espontâneo da justiça, a fim de que a polis progrida em conjunto e garanta vida digna e sofrimento mínimo para a maior parte de seus cidadãos.

Quando Sócrates afirma: "É melhor sofrer uma injustiça que praticá-la"; está a defender a autoinspeção e a autodisciplina em nome do todo. A justiça como Bem real, quando buscada, revela o verdadeiro querer em oposição ao desejar. O “desejar” apenas busca a aparência da felicidade, com as satisfações efêmeras como o dinheiro, o poder, o status e o sexo fácil, por exemplo, não levando em consideração as possíveis consequências decorrentes dessas aspirações, tanto aos demais quanto a si mesmo. Por mais que algo desejado pareça ser bom, em algum momento acabará se manifestando como nocivo. Enquanto isso, o “querer” fundamenta-se nas virtudes da alma como a generosidade, a humildade e a lealdade; o querer pesa na balança a concatenação dos efeitos dos nossos atos e leva em consideração os sentimentos alheios. A sociedade justa, para Sócrates, é o único meio de uma comunidade subsistir.