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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Arqueologia da Violência

Este post é uma resenha do texto “Arqueologia da Violência” de Pierre Clastres que busca entender o porquê do comportamento violento e do espírito de guerra presentes na maioria dos povos ditos selvagens.

As comunidades primitivas nunca foram entendidas como verdadeiras sociedades pelo Velho Mundo, pois viviam em constantes guerras. A guerra, dentro do parâmetro “ocidental” de sociedade, é algo indesejável, algo a ser evitado. Já para os padrões primitivos, a Guerra parece ter uma dimensão universal. Nenhuma teoria que tente explicar o comportamento destes povos deve deixar de levar em consideração este papel fundamental da Guerra. Alguns discursos, ao longo da história, arriscaram algumas explicações, mas a maioria destas apresenta alguma inconsistência. Para Thomas Hobbes, por exemplo, os selvagens eram “pessoas sem governo”, uma vez que interpretava a violência dos selvagens como resultado da ausência de um Estado que claramente estabelecesse uma sociedade “civilizada”, com valores éticos, hierarquias, etc.


O discurso naturalista, por sua vez, diz que a violência tem raízes biológicas, desenvolvida pela aquisição e a caça. Assim, os caçadores por sua força se impunham diante de outras aldeias na tentativa de as dominar politicamente. Pierre Clastres discorda dessa visão, pois o caçador, segundo ele, não tem motivação outra a não ser saciar seu apetite e a de seus conterrâneos. A Guerra e a caça não podem ser sinônimos, pois não há agressividade na caça; tal pensamento seria uma redução, seria tentar dizer que o sociológico está contido no biológico. A Guerra primitiva se enraíza no ser social da Sociedade Primitiva, por sua universalidade, não por ser algo natural, mas cultural.

Já o discurso economista parte do pressuposto de que o mundo selvagem é infeliz por sua “miséria primitiva”. Segundo esse pensamento, a economia para a subsistência dos primitivos é uma economia de miséria que propicia a Guerra. A Guerra é então interpretada como consequência da escassez; um povo, extremamente subdesenvolvido optaria pelo confronto com um outro mais abastado, aos padrões marxistas de luta de classes. Esta visão também é rebatida pelo texto, pois a economia primitiva não sentia necessidade de acúmulos, se satisfazia com o estritamente necessário, ou seja, uma tribo dificilmente entraria em atrito com outra por razões econômicas. Uma comunidade em dificuldades de subsistir iria preferir usar o tempo caçando mais, ao invés de lutar contra terceiros.

O discurso relativo à troca de Claude Lévi-Strauss enfatiza a Guerra como fruto de interações sociais. A Guerra Primitiva é uma atividade sociológica: “as trocas comerciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas e as guerras são resultado de transações malsucedidas”. Nesta perspectiva, as relações comerciais surgem como uma Prioridade Ontológica. Levi, corrige depois o termo comércio por simplesmente “trocas” com o sentido de serem dádivas recíprocas e não operações comerciais, uma vez que as sociedades primitivas, como dito, procuravam produzir tudo o que necessitavam para não precisar negociar com ninguém, elas tinham orgulho da própria independência. Desta forma, não é mais o comércio que provoca a Guerra, mas a troca. A exposição de Lévi-Strauss define a Guerra como algo sem positividade, efeito do fracasso das trocas. Logo, para ele, a Guerra é um não-ser da sociedade, uma não essência. O autor afirma que a visão de Lévi-Strauss parece ser ingênua, uma vez que se a Guerra tivesse somente relacionada com a troca, os confrontos seriam raros, ou seja, haveria a dissolução do fenômeno guerreiro, e não é isso que os dados etnográficos e os relatos dos viajantes do Velho Mundo relatam; a Guerra para os selvagens era frequente. Logo, interpretar o ser social exclusivamente à troca é uma redução. Hobbes não considerava a troca e Lévi-Strauss não considerava a universalidade de Guerra, e ao situar troca e Guerra no mesmo plano sociológico, deu à realidade primitiva uma explicação simplista.

Há ainda um outro discurso que procura entender melhor a realidade dos selvagens relacionando a Guerra com a fragmentação em múltiplas aldeias. A Guerra, neste ponto de vista, não é o efeito da fragmentação, mas a fragmentação o efeito da Guerra; efeito e finalidade. Os povos primitivos desejam esta divisão, como uma vontade sociológica. Cada grupo tem sua unidade política, que se revela através de cerimônias, hábitos e costumes e estas características transcendem a variedade econômica. A aldeia então se caracteriza por um espaço exclusivo de direitos comunitários; colocando outros povos à margem, em exclusão. Ou seja, é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito exclusivo sobre um território determinado, como uma relação política dada na alteridade. A explicação é boa, porém parece ainda não responder a universalidade da violência, pois se os confrontos tivessem motivação apenas territorial/política, a Guerra teria somente caráter defensivo e é sabido que a maior parte das Guerras relatadas entre estes povos tinham motivação ofensiva.


Para aprofundar ainda mais o debate é preciso levar em consideração alguns detalhes que foram postos de lado até o momento, estabelecendo um contraste entre a Sociedade do Velho Mundo e a Sociedade Primitiva. Para os selvagens, não há divisão do trabalho (exceto pelo sexo), os indivíduos são polivalentes e não existem diferenças sociais tão discrepantes como as presenciadas nas sociedades modernas. Um selvagem não cultiva o desejo de acumulação de bens e posses e por esse motivo a desigualdade e exploração no meio primitivo não são tão evidentes. Ou seja, há um sentimento de completude e independência que é mantido por Leis internalizadas pelos membros numa Tradição. O texto conceitua este “sentimento” através do binômio Totalidade e Unidade. Na Totalidade se garante a autonomia e na Unidade a igualdade. O chefe ou líder não fala por si, mas em nome da manutenção deste binômio, na tentativa de se manter Leis que são, na maioria da vezes, Leis Míticas (Lei Ancestral) que representa o SER de sua sociedade. Os integrantes dessas tribos incorporam este sentimento e desejam assegurar o controle de seu território sob o signo da Lei Ancestral, responsável por sua indivisão; neste contexto, o Outro (aldeias vizinhas) tem a função de atuar como um “espelho” que reflete a própria Unidade e Totalidade de uma comunidade. A diferença absoluta revela a igualdade entre os membros e a autonomia do clã. Por essa razão a Sociedade Primitiva é fragmentada e destacada pela multiplicidade, cada tribo zela por sua integridade e pela continuidade da tradição mítica através das gerações. Por este ângulo é fácil perceber que o equilíbrio entre as comunidades, por razões “ideológicas” e culturais, seria instável, na relação entre estes povos. A Sociedade Primitiva recusa-se em identificar-se com os outros, por isso usa de violência para garantir a imutabilidade de seu status-quo.

Assim, a hipótese da amizade generalizada de Lévi-Strauss seria impossível, seja pela distância espacial quanto “ideológica”. O selvagem é irredutível e desconfiado quando obrigado a relacionar-se com o Outro. O que dizer então sobre a hipótese da hostilidade generalizada proposta por Thomas Hobbes? Também não corresponderia a verdade, pois nessa ótica o resultado fatalmente seria o de dominação de uma tribo por outra, não haveria a multiplicidade, mas a prevalência de uma cultura. A universalidade da Guerra nas Sociedades Primitivas é um fato, porém falar em Guerra constante é uma precipitação, existiam momentos de paz também.

Apesar das teorias destes pensadores não serem completas, a verdade parece surgir na justaposição dos dois pontos de vista, sendo a Sociedade Primitiva fruto de trocas e de guerras, mas que se desenrolam em planos distintos. As trocas poderiam ser colocadas em termos de alianças: o Outro, nessa visão, não é necessariamente o inimigo, mas também um amigo em determinado contexto. Essa aliança não tem fidelidade eterna, sendo passível de rompimento e traição. A Aliança surge apenas como uma tática de Guerra para a preservação da autonomia da tribo, somente um meio e não o fim; portanto, há a prevalência da Guerra sobre a Aliança, e aquela está imediatamente inscrita no funcionamento dessas comunidades.


A esfera da troca é a Aliança e esta acontece, por exemplo, em forma de convites sociais, presentes sem fins econômicos e até no oferecimento de mulheres. O matrimônio nessas comunidades funciona como Aliança político-militar, com o intuito de unir as tribos com laços familiares. Lévi-Strauss disse que a Sociedade primitiva era uma sociedade de trocas, contudo, na verdade estas comunidades buscavam reduzir ao máximo a prática de trocas. A troca só existe para que haja a Aliança, e esta é apenas uma estratégia de Guerra. Uma Guerra pode acontecer por vários motivos, um dos motivos mais comuns era devido às mulheres. Nesse caso havia a necessidade de garantir esposas suplementares para que a reprodução na aldeia não cessasse; um conflito com este fim acontece quando não há vantagens na troca ou quando esta se torna inviável.

Então, a função da Guerra e a Aliança era garantir a Totalidade e a Unidade, ou seja, manter a autonomia da aldeia intacta. A troca nessa perspectiva é um mal necessário. Se tudo fosse Guerra, como defendia Hobbes, não haveria a troca, principalmente troca de mulheres. O estado de Guerra entre os grupos torna a busca da Aliança imprescindível.

Enfim, a Guerra não se dá por especificidade zoológica, concorrência vital, nem por trocas mal feitas, mas sim porque é um comportamento universal das Sociedades primitivas que enxergam o Outro como diferente e, assim, buscam defender suas autonomias. Por essa razão sempre há a possibilidade da Guerra. O estrangeiro é quase sempre o inimigo ou no máximo um aliado o qual deve-se desconfiar. Essa autonomia é inscrita por um tipo de conservadorismo/tradição baseado principalmente em Leis Ancestrais e Míticas. A Guerra é um dispositivo para impedir mudanças e é o verdadeiro motor das vida social. Se uma comunidade se mostra incapaz de manter sua autonomia, acaba destruída por outras, por isso a capacidade guerreira é uma condição indispensável de autonomia.

A Sociedade Selvagem é do múltiplo e não do um. Não deseja senhores, quer autonomia e despreza leis exteriores, portanto, rejeita a ideia de Estado. O Estado dividiria internamente, enfraqueceria a autonomia e limitaria a liberdade do clã. O anseio da Sociedade Primitiva é a fragmentação externa, ao mesmo tempo em que zela pela indivisão interna; a Guerra é o dispositivo que garante a realização deste desejo. Estas comunidades são contra o Estado na medida em que são sociedades para a Guerra.
Hobbes acertou quando disse que os primitivos são contra o Estado e que Estado e Guerra devem ser pensados numa relação excludente, mas errou em dizer que os selvagens não poderiam ser classificados como uma real sociedade devido ao comportamento violento. O mundo selvagem é social sim, mas não nos padrões de Sociedade definidos pelo Velho Mundo.

Esta questão da alteridade é evidenciada em torno de toda a problemática apresentada por Pierre Clastres. Primeiramente o conceito de Sociedade normalizado pelo entendimento europeu, no pensamento de Hobbes, é usado para definir quem é ou não sociedade, num típico preconceito etnocentrista-primitivista que julga povos espacialmente e temporalmente distantes como modelos subdesenvolvidos de cultura.

Num segundo momento, o autor mostra um tipo diferente de alteridade entre as tribos que são separadas espacialmente, mas são contemporâneas. O Outro, meu vizinho, na ótica dos primitivos é apresentado como essencial para a autonomia das tribos. A diferença absoluta aparece como determinante na afirmação da Totalidade e da Unidade e para a preservação das tradições que garantem a identidade de um clã. Por essa razão a Guerra está em relação direta com a alteridade, a Guerra dispersa, separa, evita a “contaminação” de uma cultura por outra, mantendo uma sociedade com os mesmos valores e costumes ensinados pelos ancestrais.

Por fim, Pierre tenta salientar comportamentos primitivos que poderiam ser considerados mais “civilizados” do que o próprio comportamento dos “civilizados do Velho Mundo”, tentando desfazer o ideal de homem apresentado pela filosofia aos moldes de Kant e Descartes. O sentimento de completude nas Sociedades Primitivas não concorda com a loucura da acumulação moderna. Os primitivos se sentiam completos tanto espiritualmente quanto materialmente, trabalhavam apenas para a subsistência e valorizavam o tempo ocioso e de lazer. Não viviam numa miséria primitiva, como advoga o discurso economista. Estes povos não desprezavam os ensinamentos ancestrais, não caíam na armadilha de julgá-los obsoletos, nem preocupavam-se em evoluir cientificamente e intelectualmente numa inglória “busca pela verdade” sem fim; não tinham grandes pretensões de progresso contínuo ou de estender seus os domínios em larga escala. Enfim, se contentavam com sua própria realidade e não desejam SER nada além do que já ERAM.

Se ao mesmo tempo o comportamento violento parece ser um escândalo para os “civilizados”, por outro lado, o uso do tempo e o sentimento de completude poderiam servir de exemplo para as sociedades contemporâneas cada vez mais ansiosas e mentalmente perturbadas.

Bibliografia:

  • Clastres, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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