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sábado, 26 de julho de 2014

Insubstancialidade, cadeiras e uma conversa agradável.

Uns dias atrás tive uma conversa agradável e pensei em transcrever o diálogo transformando num post. Espero que seja de algum proveito pra todos.

. . .

- Me tira uma dúvida básica?

- Claro, se eu puder!

- É sobre os três selos, eu entendo a impermanência e o sofrimento numa boa, mas a insubstancialidade e o vazio, tá meio confuso.

- Então, algumas coisas são meio complicadas mesmo, não tem problema. Vou tentar explicar assim... usando o bom e velho exemplo da cadeira (rs), vamos lá, me diz o que é uma cadeira.

- Ah, é um móvel que pode ser de vários materiais e serve pra você sentar.

- Exatamente, isso quer dizer que você tem um conceito na sua mente. Esse conceito te cria a imagem de uma cadeira.

- Sim.

- Mas me diz, essa cadeira conceitual existe?

- Uai, existe, eu vejo, toco...

- Essa cadeira que você pensou, essa da sua mente?

- Ah, é verdade, não existe! Ela é apenas uma definição, é uma cadeira teórica.

- Exatamente. A sua ideia é uma representação de todas as cadeiras. Uma cadeira pode ser de muitas formas e materiais. Então não existe uma cadeira única que seja "todas as cadeiras", essa cadeira única é essa que surge na sua cabeça e evoca uma imagem, uma cadeira que representa todas as outras. Entendeu?

- Sim, essa cadeira que eu penso não é uma cadeira que existe, é só uma ideia de cadeira. E mesmo que eu pense numa cadeira que exista, a cadeira que eu pensei tá só no meu pensamento.

- Agora vamos pensar no material dessa cadeira. De que ela é feita?

- Ah, de madeira.

- Ok, e de onde veio essa madeira?

- Da árvore.

- Certo. A árvore é a cadeira?

- Não.

- E depois que a cadeira se desfizer, essa madeira apodrecer e voltar pra natureza, ela ainda será a cadeira?

- Não.

- Então o que é a cadeira? É uma coisa fixa?

- Não, a cadeira é um ponto de um processo que a gente não consegue saber o início nem o fim.

- Perfeito! Então quando a gente diz que os fenômenos não possuem essência, ou não são reais, é isso que significa. Mas não quer dizer que aquela cadeira da sua casa não exista. Como você mesma disse, a cadeira do seu pensamento é um conceito, só existe na sua mente. Você joga esse conceito em cima da cadeira da sua casa dando a ela um significado e tentando congelar ela no tempo. A cadeira da sua casa é real? É num sentido objetivo, mas ela não possui realidade própria porque é meramente um fenômeno. Atribuir realidade ou uma característica "fixa" a um fenômeno é uma ilusão justamente por isso. Porque todas as coisas surgidas são assim. A impermanência e o vazio ou vacuidade, quer dizer que as coisas surgem de um processo e elas representam apenas um instante desse processo. A ilusão faz a gente pensar que elas são aquilo, mas elas não são. Elas estão num estado constante de mudança. E tudo é assim. Inclusive a gente. Você é apenas um instante de um processo impossível de se marcar o início e mesmo depois de se dissolver, as coisas que te formam não desaparecem, apenas passam a fazer parte de outras coisas. Isso também é a interdependência, já que se um único estágio da produção da cadeira (ou do seu surgimento) fosse eliminado, tudo seria diferente e ela nunca viria a existir.

- Mas é como se esses conceitos fizessem parte um do outro. Eu li num livro que você me indicou que os três selos do Dharma se provam mutuamente.

- Sim. Como os fenômenos não possuem essência real eles não permanecem, como eles não permanecem, não podem ser considerados razão de felicidade, pois vão desaparecer, como desaparecem, tornam-se sofrimento ou insatisfação.

- Essa coisa da insubstancialidade e do vazio eu lembro daquela parte do filme Matrix quando o Neo pergunta, "mas como você entorta essa colher?" e o menino responde: "não existe uma colher."

- Sim, eu lembro. Mas como eu falei, não tipo é aquelas "viagens" de que as coisas "não existam" mesmo, sabe. Você pega na colher, usa, então ela existe. Isso significa que a colher é vazia de realidade porque ela é apenas um ponto de um processo. Você olha pra ela e imagina que ela "é uma colher", mas ela é apenas um estágio. Como tudo que surge. Ela não é fixa na existência e não há um "ente fixo" colher. É isso que significa.

- Mas isso é um pouco complicado, né. Eu fico entre achar bacana e difícil ao mesmo tempo. (rs)

- Então, por isso existem muitas formas de praticar e absorver o ensino. Cada pessoa de acordo com suas inclinações e capacidades. Olha:
"E aquela água de um único sabor pela nuvem liberada, e estagnada aqui na terra, segundo sua força, conforme sua capacidade, as gramíneas e os arbustos a bebem.
(...)
Elas, segundo sua força, seja qual for a sua capacidade, sua semente, dão cada uma seu próprio broto, mas a água liberada pela nuvem tem um único sabor." (Sutra do Lótus. c.V)
É isso que significa.

- Sim, entendo. Por exemplo, eu já tentei meditação sentada e aquilo só me deixava ansiosa, mas a prática da lembrança do Buda Amitabha me ajuda a pensar corretamente e me deixa num estado mais claro de consciência.

- Exato. Isso são os meios hábeis. Desde que o foco seja o mesmo, o lugar que você chega é o mesmo. Se uma prática é legitimamente budista, ou seja, passa no crivo dos selos do Dharma, ela também guia à Iluminação.

- Ah, e eu gosto muito dessa passagem. Eu li num post do blog. A água é a mesma, cada um absorve do seu jeito e na sua intensidade e todos que a absorvem florescem. Como eu li também, quero dar meus passos pra fora da casa em chamas.

- Isso aí, não tem nada de bom nela. É uma casa decrépita cheia de feras e demônios. Mesmo que não houvesse incêndio, ainda seria perigoso permanecer nela.

- Sim. Foi um ótimo papo, muito obrigado! Foi muito bom a gente conversar hoje!

- Ok! Tamos aí!

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