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sábado, 13 de dezembro de 2014

Iluminação no Século 21


O Budismo não é algo retrógrado. Engana-se quem julga que a Iluminação é uma utopia, ou apenas um mito. Engana-se quem pensa que é uma religião apenas para ermitões celibatários. Um exemplo claro de que a Iluminação não se restringe aos que seguem carreira monástica está no Sutra de Vimalakirti. Neste Sutra, um leigo Budista, cidadão de Vaisali, que trabalhava e tinha família, demonstra ter conhecimentos avançados no Dharma e prática irrepreensível nos ensinamentos de Buda de tal maneira a superar e constranger até mesmo os considerados mais entendidos e experientes. Muitos discípulos diretos de Shakyamuni, monges e até Bodhisattvas aparecem em cena em diálogo com o protagonista. Sua lúcida eloquência, com seus paradoxos enigmáticos, humor incisivo e ironia cáustica, esmaga seus interlocutores.


Baseando-se em alguns Sutras (referenciados no fim deste artigo), especialmente no Sutra de Vimalakirti, e também em alguns filósofos que compreenderam o espírito do Dharma, este artigo pretende orientar Budistas contemporâneos a buscarem corretamente a Iluminação, mesmo em meio à vida agitada e degenerada dos nossos dias.

“Naquele altura, vivia na grande cidade de Vaisali um certo Licchavi, conhecido pelo nome de Vimalakirti. Tendo servido antigos Budas, tinha gerado as raízes da virtude, honrando-os e fazendo-lhes oferecimentos. Ele tinha alcançado tolerância assim como também eloquência. Praticou a Perfeição da Sabedoria. Tinha atingido o poder dos encantamentos e do não temor. Tinha conquistado todos os demônios e oponentes. Tinha penetrado o modo profundo do Dharma. Era libertado pela transcendência da sabedoria. Tendo integrado a sua realização com a destreza na técnica de libertação, ele era especialista sabendo os pensamentos e acusações dos seres vivos. Sabendo a força ou fraqueza das faculdades deles, e sendo talentoso com eloquência sem rival, ele ensinou o Dharma adequadamente a cada um. Tendo-se aplicado energicamente ao Mahayana, entendeu e realizou as suas tarefas com grande subtileza. Viveu com o comportamento de um Buda, e a sua inteligência superior era tão grande quanto um oceano. Era elogiado, honrado, e recomendado por todos os Budas, respeitado por Indra, Brahma, e todos os Lokapalas. Para desenvolver os seres vivos com a sua habilidade na técnica de libertação, ele vivia na grande cidade de Vaisali.”
Sutra de Vimalakirti – Capítulo 1

Vimalakirti

Vimalakirti era um cidadão rico de Vaisali (atual Bsarh), seu nome significa “aquele que tem fama sem nódoas”. O Sutra que leva seu nome, de forma geral, aconselha ao aspirante pela Iluminação uma série de medidas, a maioria, senão todas, associadas com a visualização de uma realidade além de bem e mal e além da aparente relação entre entes substanciais, incentivando a perspectiva do vazio – shunya. Um ente substancial pode ser entendido como algo que possua uma realidade objetiva que permanece imutável. Segundo Aristóteles, é o suporte ou substrato pelo qual a matéria se constitui em algo seguindo uma forma. O filósofo divide a substância em duas:

A substância primeira refere-se aos seres particulares, individuais, realmente existentes, na qual podemos ter sensações (referência imediata). Já a substância segunda refere-se aos universais abstraídos dos indivíduos (por isso são referências mediadas pelo pensamento, pelo raciocínio). Sua existência depende dos indivíduos, que são classificados em gêneros e espécies. A substância é sempre sujeito, isto é, aquilo do que se fala, do que se atribui.

De acordo com Descartes, o termo substância significa aquilo que permanece constante depois de toda e qualquer transformação. Como, por ilustração, é sabido empiricamente que a substância água permanece água em seus três estados físicos ou como alguém chamado João continua sendo a mesma pessoa desde a infância à velhice (o João não se transforma em Pedro no decorrer da vida, por exemplo).

A filosofia do vazio defende o ponto de vista da não dualidade, fundamentando-se a partir da impossibilidade de traçar distinções nítidas e inequívocas entre as coisas despidas de ser próprio. Com relação à realidade mais alta, não se pode dizer que existe “a coisa em si mesma” (não existe substância). Assim como as coisas, as palavras, as percepções comuns, os julgamentos e até a cognição são desprovidos de realidade objetiva. A perspectiva substancial classifica o entes como separados do todo; não considera o vazio que a tudo permeia. Desta forma, ignora que a manifestação da realidade se desenrola segundo fenômenos condicionados e interdependentes que fazem parte de um único organismo, o Universo. Somente ao deparar-se com o vazio que a consciência pode perceber a não existência de substratos em si mesmos (nada permanece constante, como disse Heráclito, é impossível uma mesma pessoa atravessar o mesmo rios duas vezes). Uma vez que este desvelamento da consciência vai retirando todas as camadas ilusórias, uma nova consciência autônoma, livre de opressões e apegos é construída.

Eternalismo e Niilismo

Uma consciência autônoma não acata de imediato conceitos ordinariamente considerados óbvios ou verdadeiros difundidos pela cultura, ciência ou religião, sem antes debruçar-se sobre estes conceitos e colocá-los à luz dos Ensinamentos de Shakyamuni. Para o Budista, por exemplo, não há espaço para uma interpretação eternalista da realidade. O eternalismo aprisiona a mente numa relação de dependência e esperança alucinatória, que pode vir a se tornar angústia. A crença em uma entidade divina e eterna se dá pela necessidade humana de precisar de um propósito e para o alívio de sua dor perante a finitude. Tal mentira confortável, distorce toda e qualquer reflexão séria sobre a morte e a impermanência, agindo como um empecilho à Iluminação.

“Na realidade, o teísmo não é produto do conhecimento, mas sim da vontade(...) a necessidade constante, que ora oprime com força, ora abala com violência o coração (a vontade) do homem e o mantém continuamente em estado de temor e esperança, enquanto as coisas que ele teme e espera não estão em seu poder; e até a conexão das correntes causais, às quais essas coisas são conduzidas, só podem se alcançadas um pouco mais além de seu conhecimento. Essa necessidade, esse temor e essa esperança constantes induzem-no a efetuar a hipóstase de seres pessoais, dos quais tudo dependeria. Desses se pode supor que, como outras pessoas, serão suscetíveis de pedidos e adulações, serviço e dádiva e, portanto, de serem mais tratáveis do que a inflexível necessidade, as forças inexoráveis e insensíveis da natureza e os misteriosos poderes do curso do mundo.”

Fragmentos Sobre a Historia da Filosofia – Schopenhauer. Editora: Iluminuras, 2003 – p. 105-106.

O medo de morrer pode gerar um apego desmedido a elementos cotidianos e um consequente desespero diante da possibilidade de vir a “perder tudo” com a morte. No Budismo, assim como na filosofia grega antiga, o desapego é condição essencial para uma “boa morte”. Filosofar é aprender a morrer – dizia Platão. Na morte, não podemos levar nada conosco. Nem dinheiro, nem bens, nem diplomas, nem status. Eis aqui um paradoxo: para livrar-se do temor do fim, é preciso cultivar um certo desapego em relação à vida.

A vida é como um contrato que estabelece a própria vigência em uma das cláusulas. Todos estamos submetidos às regras deste “jogo”, apesar de não termos escolhido participar dele. Ou seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis da existência, que determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato é uma luta inglória, uma inexorável garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade desta condição ajuda a encararmos o sofrimento que a ideia da morte costuma trazer. Ninguém pode mudar o fato de que a vida vai acabar um dia.

O Budismo certamente recomenda que tenhamos uma vida saudável a fim de alcançarmos maior longevidade para que, assim, tenhamos mais tempo na prática do Dharma. Entretanto, a fixação pelo padrão jovem como metáfora de vida saudável, teme excessivamente a velhice e se obstina pela utópica eterna juventude. Há nesse comportamento uma negação muito clara da finitude. Sobretudo porque o fetichismo da juventude eterna, os ideais de progresso, acumulações, os valores da sociedade e de consumo são antagônicos à ideia de morte. O imediatismo impera! O resultado é uma sociedade atormentada, que busca inutilmente a serenidade e a felicidade não no autoconhecimento, mas em fugas da realidade indiscutível de que um dia deixaremos de existir. O Budista deve empenhar-se em práticas específicas de preparação para a morte. Uma delas é a meditação, que tem por objetivo contemplar a Verdade e a Vacuidade, domar a mente, a ansiedade e as emoções prejudiciais.

Em contrapartida, o extremo oposto ao eternalismo também é uma ilusão. O niilismo, que pode ser definido como uma desvalorização e aniquilação do sentido, causando a ausência de finalidade e de resposta aos “porquês”; considera a existência como mera relação psicofísica que é totalmente aniquilada sem nenhuma consequência restante após a morte. Esta concepção implica em uma doença hedonista, abrindo as portas para o embotamento da consciência e a total negação de suas relações com o todo. Os valores tradicionais depreciam-se e os "princípios e critérios absolutos dissolvem-se". As verdades e os valores tradicionais se despedaçam, tornando-se difícil prosseguir no Caminho da Iluminação.

Renunciar ao eternalismo não significa abraçar o niilismo. A vida não é um vale-tudo, ou seja, não se pode abrir mão de fundamentos, verdades, critérios absolutos ou universais. Portanto, não há como nos isentarmos da responsabilidade pelos nossos atos e o fato de não termos uma alma eterna não implica necessariamente que esta vida não tenha um “objetivo” que valha a pena ser perseguido.
Este antagonismo entre vida e morte se mantém dentro de cada um de nós, é um jogo constante entre dois lados de uma mesma moeda. Focar-se em um dos lados e desprezar o outro consiste em perder-se em um dualismo. Vida e Morte ocorrem concomitantemente; logo precisam ser encaradas como produtos de um único e mesmo fenômeno.

Ater-se apenas às forças da vida é apenas concentrar-se em um lado da moeda; esta ênfase prejudica qualquer reflexão sobre a morte e a efemeridade. Quem assim procede, mesmo que de forma inconsciente, julga-se imune ao envelhecimento, doença e morte. Essa concepção de vida faz com que, guiados “cegamente” por outras prioridades, pais percam a oportunidade de participar da infância dos filhos e que os filhos não usufruam da breve presença dos pais neste mundo; além de não preparar a própria pessoa a infortúnios e enfermidades inevitáveis. O resultado desse proceder é um amargo karma, indissolúvel, uma vez que o tempo não volta atrás. Em contrapartida, somente focar-se na “força destrutiva constante” alimenta o pessimismo e as atitudes de auto sabotagem, por exemplo, a vida perde seu sabor, e tudo mais “não vale a pena”. Da conciliação dessas forças aparentemente contraditórias, porém oriundas de um mesmo fenômeno, surgiria o equilíbrio e o vigor mental necessários para que o grande sim que a vida merece seja dito, mesmo em meio aos seus percalços e tragicidades. Assim, a finitude inevitável atuaria como mola propulsora para o correto aproveitamento dos efêmeros momentos, enquanto, ao mesmo tempo, o florescer diário incessante, atuaria com uma motivação para um viver intenso, consistente e com um propósito. O Caminho do Meio é este equilíbrio, pois ao contrário dos extremos, ele seria então capaz de produzir uma compreensão que guia para a serenidade verdadeira, é um conhecimento superior, o Caminho para a Iluminação.

Asceticismo e o Nobre Caminho

O Sutra também propõe o asceticismo como uma das ferramentas para a Iluminação. O caminho ascético expressa-se como algo contínuo, uma progressiva ascensão que realiza estados do ser, proporcionando autocontrole e domínio sobre os sentidos. Desta forma, o asceta deve se policiar contra os perigos do apego aos prazeres, da jactância e hipocrisia, bem como, não deve agir com expectativas de reconhecimento ou recompensas. Isso não implica, contudo, em uma vida sem nenhum prazer; o divertimento é permitido e até aconselhável, contanto que este não seja objeto de apego e esteja alicerçado à ética ensinada pelo Dharma.

O praticante Budista deve ser capaz de transcender tanto a valores assentidos como verdadeiros pelo senso comum (oriundos da cultura e da religião a qual está submetido), quanto a valores adquiridos pela experiência, substituindo ambos pelos valores do Dharma. Transcender a bagagem adquirida pela vivência consiste em derrotar o passado, não ceder à tentação de analisá-lo de maneira interessada ou fingida e evitar o aprisionamento à lembranças ruins ou nostálgicas. Por outro lado, transpor a cultura está relacionado a se desvencilhar da moralização dos costumes: “O cidadão tornado cidadão”. É relutar contra a internalização de valores e hábitos, que muitas vezes são acatados sem uma devida reflexão.

Assim, a estrada para a Iluminação é uma via que requer disciplina. O Budista deve estar disposto a uma vida de estudo, obediência ao Dharma, busca pela vida virtuosa e renúncia aos valores comuns e aos próprios desejos, inclinações e reações. Ser forte é ter decisão sobre si mesmo e o vício é a capacidade de não conseguir tomar esta decisão e se deixar levar por pensamentos já existentes, que não brotaram no interior do ser, mas foram internalizados por algum “saber pronto” ou ideologia. O Budista é aquele que não se seduz pelo conhecimento vigente e escancara, a quem interessar, toda a podridão do alicerce em que a sociedade fundamenta sua moral. Solapa-se as bases desta falsa moral para que as vias da Verdade do Dharma sejam apresentadas.

Encontrar e permanecer no equilíbrio tornando-se senhor de si mesmo; é isso que significa renascer como ser humano (perceber-se realmente como é em sua natureza, sem prepotência ou falsa humildade) e o primeiro objetivo do Arya-Marga (Nobre Caminho) é atingir o mundo humano e não retornar mais aos mundos inferiores.

Quando alguém tem contato com o Dharma e recebe alguma instrução, imediatamente tal pessoa é convidada à reflexão cuidadosa e é esse processo que a leva ao Nobre Caminho. É através disso que se compreende a natureza dos fenômenos, a impermanência dos Cinco Agregados da existência e que vale a pena seguir os preceitos morais Budistas, pois estes produzem a minimização do sofrimento e a Justiça.

No Livro III “Da República”, Cícero apresenta sua defesa do conceito de Justiça que cabe ser mencionado neste trabalho. Para ele existe uma Justiça Natural, que nasce com o homem e é “acessada” através da reta razão. O Sagrado está na Justiça Natural e a constituição de uma cidade que quer se manter forte e equilibrada, sendo fundamentada no Sagrado, daria vazão à Justiça Natural, propiciando a educação de homens virtuosos. É nos bons costumes que se ratifica esta Justiça. Essa “produção” de bons homens é o caráter sagrado (reflete uma disposição virtuosa). E sendo sagrado, opera com equanimidade.

Compaixão

Finalmente, o aspirante pela Iluminação deve sentir compaixão pelos seres. O voto de Bodhisattva contempla este sentimento e o Sutra de Vimalakirti o descreve pela doença do protagonista. Vimalakirti compartilha sua doença como se fosse a doença espiritual dos seres afastados da Budeidade, sua enfermidade tem o intuito de reunir Budas e Bodhisattvas para a pregação do Dharma aos seres que sofrem.

Como já foi dito, o vazio nos situa como parte de um organismo maior, interdependente do todo. Nesse sentido, todos somos UM. Compaixão é colocar-se no lugar do outro, ou seja, sofrer junto com o outro. Ora, nesta concepção, de alguma forma somos realmente o outro. Nisso se fundamenta a ética Budista. Agir de modo indisciplinado, sem a menor preocupação com as consequências dos atos cometidos não é compaixão, pois pode gerar um sofrimento que poderia ser evitado (tanto a si mesmo quanto aos demais). O karma negativo provém da injustiça e do provocar sofrimento, este karma pode se perpetuar em suas consequências por muito tempo, da mesma maneira com que bons karmas podem frutificar e beneficiar os seres indefinidamente. No Budismo não há uma recompensa em se fazer o BEM – é o BEM pelo BEM – pelo simples motivo de que, no fundo, não há um eu e não há um outro. O Bodhisattva só descansa quando este mundo tiver se tornado a “Terra Pura”; para isso, sua compaixão deve ser uma prática diária incessante, capaz de impactar todos os seus costumes e atos cotidianos, inclusive, seus hábitos alimentares. Aquele que pensa ter amor aos seres e consome animais não parece ser sincero em seu voto de “se colocar no lugar do outro”. Os Sutras do Lótus, do Nirvana, Brahmajala, Lankavatara e muitos outros são claros a esse respeito, ao categoricamente afirmar que o consumo de carne prejudica o desenvolvimento da compaixão. Portanto, o Budista deve ser impreterivelmente vegetariano.

“Um discípulo de Buda não deve comer carne deliberadamente. Ele não deve comer carne de nenhum ser vivo. O comedor de carne perde a semente da Grande Compaixão, corta a semente de sua natureza búdica e faz com que todos os seres (animais e transcendentais) o evitem. Aqueles que o fazem são culpados por inumeráveis ofensas. Assim, Bodhisattvas não devem comer carne de nenhum ser senciente que seja.”
Brahmajala-Sutra (Bonmon-Kyô)

Promover a paz, ser justo nos julgamentos e agir com coragem, a fim de proteger e ajudar aqueles que precisam, também refletem a personalidade de um genuíno discípulo de Shakyamuni. O Budista deve evitar a violência, recorrendo a esta apenas em situações extremas, como em autodefesa ou para salvar inocentes. Aproximar nosso mundo à “Terra Pura” também consiste na preocupação com o meio ambiente; um planeta organizado, limpo e preservado produz bons karmas, minimizando, assim, o sofrimento de todos.

Veneração ao Dharma

O devotado ao Dharma deve, se não celibatário, casar-se. Uma vida de relacionamentos casuais é uma vida de apego aos prazeres e portanto, não recomendada. O matrimônio deve ser construído sobre sólidos valores morais, como a lealdade e o companheirismo; os filhos devem enxergar nos pais uma conduta ilibada, receber boa educação, afeto e disciplina.
O Caráter Sagrado mencionado por Cícero, nada mais é do que o próprio Dharma, e é caracterizado no Sutra de Vimalarkiti como a verdadeira oferenda ao Buda:

“E suponhamos, finalmente, que tendo erguido todas estas stupas para os Tathagatas, foram-lhes dedicar um éon ou mais, oferecendo-lhes flores, perfumes, bandeiras, e padrões, enquanto tocam tambores e música. Assim feito, o que pensa você príncipe dos deuses? Aquele nobre filho ou filha receberiam muito mérito como consequência de tais atividades?
Sakra, o príncipe dos deuses respondeu, “Muitos méritos, Senhor! Muitos méritos, ó Sugata! Se alguém fosse gastar centenas de milhares de milhões de éons, seria impossível medir o limite da massa de méritos que o nobre filho ou filha juntariam desse modo!
O Buda disse, 'tem fé, príncipe dos deuses, e entende isto: quem aceita esta exposição do Dharma chamada 'Instrução na Libertação Inconcebível', recite-a e entenda-a profundamente, ele ou ela juntarão méritos ainda maiores do que os que executaram os mencionados atos. Porquê assim? Porque, príncipe dos deuses, a Iluminação dos Budas surge do Dharma, e a pessoa os honra pela adoração do Dharma, e não através da adoração material. Assim é ensinado, príncipe dos deuses, e assim você deve entender”.
Sutra de Vimalakirti – Epílogo

Esta adoração ao Dharma não é em hipótese alguma apenas um gesto cerimonial, mas sim a práxis do Dharma na vida do Bodhisattva, é o profundo respeito aos preciosos ensinamentos do Tathagata. A verdadeira oferenda que o “Buda espera de nós” é a vivência sincera no Dharma, que segundo os Sutras, pode ser vivida por todos aqueles que perceberem a natureza de Buda em suas mentes. Essa vivência nos revela a realidade como ela é, nos liberta de convicções extremistas, nos faz perceber o vazio, nos livra do egoísmo e do apego às ilusões eternalistas e niilistas. Além disso, nos leva a realizar o voto do Bodhisattva, mesmo sabendo o quão árduo é este caminho.

Conclusão

Enfim, manifestar a “Espiritualidade” no Budismo significa aspirar pela Iluminação. Este Caminho se dá pelo cultivo da mente através da compaixão, meditação, da moralidade e do estudo aprofundado em busca da Verdadeira compreensão da realidade. Não está relacionado com nenhum tipo de ideia sobrenatural, perenidade da alma, deuses ou mundos alternativos. Muitos acreditam que a Iluminação era viável apenas em outros tempos ou que seria plausível somente a monges completamente isolados dos contextos urbanos contemporâneos. Entretanto, não é essa a mensagem apresentada pelos Sutras.
Encontramos com muita frequência no Cânone Budista todos os tipos de símbolos viris e guerreiros. Shakyamuni, pertencia a uma antiga família da nobreza guerreira Arya, os Shakyas, e sua doutrina não era uma doutrina voltada às massas, nem tinha qualquer relação com superstições ou misticismo. A renúncia Budista é de um tipo viril e aristocrático e é animada por um alto propósito; não é ditada pelas necessidades mas é conscientemente determinada pela livre vontade, assim, a pessoa que a pratica pode superar as necessidades e tornar-se reintegrada a uma vida perfeita. Apesar de a carreira monástica atuar como uma ferramenta valiosa para o aperfeiçoamento espiritual quando bem orientada, não é preciso ser necessariamente um monge para poder experimentar o caminho da Iluminação. Como foi visto, os ideais essenciais do caminho ascético é o “universal” como conhecimento universal e conhecimento como libertação e podem ser “conquistados” por todo aquele que compreender o Dharma.

“Ananda, todos o Budas são iguais como a perfeição das qualidades Buda, que são: as suas formas, as suas cores, o seu brilho, os seus corpos, as suas marcas, a sua nobreza, a sua moralidade, a sua concentração, a sua sabedoria, a sua libertação, a sua gnose e pontos de vista da libertação, as suas forças, os seus não medos, as suas especiais qualidades Buda, o seu grande amor, a sua grande compaixão, as suas úteis intenções, as suas atitudes, as suas práticas, os seus caminhos, a extensão das suas vidas, os seus ensinamentos do Dharma, o seu desenvolvimento e libertação dos seres vivos, e a sua purificação dos campos Buda.”

Sutra de Vimalakirti – Capítulo 11

A Iluminação pode ser entendida como um “fenômeno” suprarracional ou de uma sabedoria libertadora, como em um “despertar” em direção ao “Homem Superior”, que supera a si mesmo e ainda que sendo filho de seu tempo, torna-se atemporal. A visão do Buda atemporal torna possível uma consciência precisa da evolução temporal dos seres vivos, de seu progresso inexorável até sua própria consciência Iluminada. O Dharma é permeado de um senso de superioridade moral, clareza e de um espírito indomável. Buda mesmo era chamado de “o Plenamente Autodesperto”. A “Espiritualidade Budista” não é algo que resolvo fora deste mundo, mas sim um refinamento do que produzo em mim. O Iluminado deve ser um imperador do Dharma, absolutamente bem-sucedido na conquista da verdade.

Ascetismo é uma forma superior de busca por uma comunhão espiritual. Está acima da moralidade comum e da ética comum. Ascetas podem fazer coisas consideradas "imorais" ou "amorais", desde que haja um objetivo superior de sublimação (ascese antinômica). Como uma vez me disse meu mestre, Arya Dharmananda Mahacarya (André Otávio Assis Muniz KGK), um Budista pode, por exemplo, aparentar ser imbecil ou grosseiro sendo, na verdade, um sábio. Pode chocar as pessoas para que elas tenham uma imagem negativa dele e, dessa forma, macerar o ego. Vimalakirti, no capítulo 3 de seu Sutra, revela a identidade verdadeira de Mara; aparentemente envolvido com as servas sensuais de Mara em escândalo, ele as toma como suas próprias servas, porém as converte do desejo carnal ao “prazer” pelo Dharma.

O vazio é tema central do Sutra de Vimalakirti, que está associado a noções como inconcebível, inexprimível, não dualidade e na preocupação com os demais seres. A realidade é vazia, ou seja, todos os fenômenos são impermanentes e seguem seu próprio fluxo, têm uma sabedoria interna, um direcionamento próprio. Todos são causados e condicionados. Desaparecidas as causas e condições, cessam; presentes as causas e condições, voltam a se manifestar. Não há nada que não esteja em constante transformação e movimento, tudo o que hoje existe se dissociará e ganhará novas formas. As “coisas” são em potência e se manifestam em um constante devir. Não há entes substanciais, todos os entes que hoje têm uma forma aparentemente definida conhecerão a finitude e de seus agregados novos seres podem surgir. O Budista do século XXI deve entender que este “constante devir” permeia toda a natureza e, por conseguinte, encontra-se igualmente em sua mente; só assim poderá enxergar a realidade nua e crua, adentrar o Arya-Marga e se Iluminar.

“Assim é necessário saber, príncipe dos deuses, que entre todas as adorações rendidas ao Tathagata, a adoração do Dharma é muito melhor. Sim, é bom, eminente, excelente, perfeito, supremo e inexcedível. E então, príncipe dos deuses, não me adore com objetos materiais, mas adore-me com a adoração do Dharma! Não me honre com objetos materiais, mas honre-me através da honra ao Dharma!”

Sutra de Vimalakirti – Epílogo



Referências:
Vimalakirti Nirdesa Sutra. Tradução da versão inglesa de Robert A. F. Thurman. Copyright 1976, The Pennsylvania State University.
Sutra do Lótus da Verdadeira Doutrina. Tradução Fernando Tola e Carmen Dragonetti, São Paulo: Editora Promordia, 2006. 623 p.
The Mahayana Mahaparinirvana Sutra. Traduzido do inglês por Kosho Yamamoto da versão chinesa Dharmakshema (Taisho Tripitaka Vol. 12, no. 374).
Brahmajala-Sutra. Tradução do Comitê Americano e Canadense. Nova Iorque. 2000.
YOSHINORI, TAKEUCHI. Espiritualidade Budista I, A Índia, Sudeste Asiático, Tibete e China. Tradução Maria Clara Cescato. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. 506 p.
NIETZSCHE, FRIEDRICH. Ecce Homo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2008. 146 p.
MARTIN, HEIDEGGER. Da Essência da Verdade. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983, 2ª edição. (Coleção Os Pensadores).
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