Pesquisa

domingo, 23 de março de 2014

A Essência do Sutra do Lótus

A Essência do Sutra do Lótus
por Marcelo Prati (Renji)

Recentemente postamos um texto sobre o conceito de mente no Budismo, você pode ler clicando AQUI. Depois, conversando com Sandro, eu fiquei pensando... algumas ideias, construções de pensamento, podem parecer complexas para algumas pessoas, já que nós somos tão diferentes uns dos outros, possuímos histórias de vida diferentes, propensões diferentes, profissões, gostos, enfim... como faríamos para levar em consideração a diferença entre os seres humanos e suas particulares inclinações? Simples. O cânone budista é enorme, existem milhares de textos e ensinos que, contudo, visam o alcance do mesmo ponto. São várias formas de se chegar no mesmo lugar. Vou explicar melhor.

Mudra da Roda da Lei
O Buda girando a Roda do Dharma.
O Sutra do Lótus é considerado por Chih-i T'ien-t'ai e diversos outros mestres como o topo, o teto do desenvolvimento do pensamento religioso. Um dos pontos centrais desse sutra é a unificação de todos os ensinos num corpo único, onde todos os textos apontam para uma mesma direção. Sendo assim, há um ensino apropriado para pessoas de maior ou menor erudição ou com determinadas aptidões particulares, etc. Contudo, isso nada tem a ver com a ideia moderna de que todas as religiões são iguais, pois é óbvio que elas não são. Não se pode afirmar que uma religião como o Budismo - onde não há deuses, nem orações, nem pedidos, nem bênçãos, nem recompensas no presente nem no futuro (tudo isso é absolutamente claro no cânone), uma religião criada por seres humanos e completamente voltada ao desenvolvimento dos seres humanos - seja igual ao que se tem no imaginário popular atrelado ao conceito de "religião", ou mesmo ao que se vende popularmente como Budismo, uma distorcida miscelânea indigesta e pseudo-esotérica.

Temos então uma consideração interessante para fazer. O Budismo que era dividido entre Pequeno Veículo (Hinayana) e Grande Veículo (Mahayana) é na verdade, um único movimento crescente que culmina no Sutra do Lótus com o conceito de Veículo Único. Além disso, através do conceito de Meios Hábeis (meios expedientes, habilidade nos métodos, dependendo da tradução que você tenha disponível) explica-se que através de seus próprios métodos, os budas criam "estratégias" para que os mais variados tipos de seres atinjam o mesmo objetivo na prática budista. Leia:
"Ó Shariputra, Eu ensino aos seres a Doutrina pensando num Único Veículo - o Veículo dos Budas. Não existe, ó Shariputra, um segundo ou terceiro Veículo. Em todas as partes ó Shariputra, no universo com suas dez direções, essa é a essência da Doutrina.
(...)
"Aqueles Tathagatas, Arhants, Perfeitamente Iluminados, que, ó Shariputra, num tempo futuro, nas dez regiões do espaço, nos incalculáveis, incomensuráveis sistemas de mundos, hão de existir para o bem de muitos homens, para a felicidade de muitos homens, por compaixão do mundo, para o benefício, para o bem, para a felicidade da imensa comunidade de seres, de Deuses e de homens, e que, conhecendo as inclinações dos seres de múltiplas propensões, de múltiplos caracteres e inclinações, ensinarão a Doutrina propondo múltiplas formas de auto-realização, com variados esclarecimentos mediante provas e razões, com a explicação dos fundamentos, com Habilidade nos Métodos - todos esses Budas, Bhagavants, ó Shariputra, ensinarão aos seres a Doutrina pensando num Único Veículo.
(...)
Também agora Eu, ó Shariputra, que sou um Tathagata, Arhant, Perfeitamente Iluminado, conhecendo as inclinações dos seres de múltiplas propensões, de múltiplos caracteres e inclinações, ensino a Doutrina propondo múltiplas formas de auto-realização, com variados esclarecimentos mediante provas e razões, com a explicação dos fundamentos, com Habilidade nos Métodos (...) E aqueles seres que, ó Shariputra, ouvem agora minha Doutrina, todos eles também obterão a Suprema Perfeita Iluminação. Desta maneira, ó Shariputra, que se saiba que não existe em nenhum lugar, nas dez regiões do espaço, no mundo, o ensinamento de um segundo Veículo, quanto mais de um terceiro."
(Sutra do Lótus, c.II)
No capítulo III isso ainda fica mais claro com a parábola da casa em chamas. Para quem não conhece, tomo a liberdade de oferecer um resumo:

Há uma casa onde habitam todos os tipos de seres, toda sorte de animais, demônios e feras. Essas bestas divertem-se em rasgar e comer carnes alheias, despedaçando cadáveres e brutalmente ferindo umas as outras. Criaturas diabólicas maltratam cães e riem-se disso. Outros espíritos famintos se arrastavam nus, raquíticos, gemendo e lamentando a procurar comida, nunca estando satisfeitos.
De súbito a casa é tomada por fogo e inevitavelmente será consumida pelas chamas. Esses seres terríveis são tomados pelo desespero. Correm, matam-se uns aos outros, tragam-se, gritam e chiam enquanto o cheiro podre de excremento e sangue se espalha por todo o mundo. Os fantasmas famintos mesmo com os cabelos em chamas ainda se torturam a reclamar de sua fome. O dono daquela casa chega e vê tal cena horrível e imediatamente lembra de seus filhos ocorrendo-lhe a ideia de entrar na casa e buscá-los, mas como crianças são brincalhonas, poderiam achar que era um tipo de jogo. Elas correriam achando que ele não falava sério. De pé na porta então grita:
- Meus filhos! Saiam dessa casa! Ela está pegando fogo! Saiam e não sejam vítimas desse desastre! Aí dentro está cheio de demônios, bestas e animais que procuram carne para se alimentar! Mesmo que não houvesse incêndio, ainda assim a casa seria perigosa!
Contudo as crianças não saem... brincam, iludidas com seus jogos, não prestam atenção no que o homem diz e algumas delas nem sequer sabem o que significava "desastre" ou "incêndio."
Então, o homem conhecendo as inclinações de seus filhos usa suas habilidades para atraí-los dizendo:
- Olhem, crianças! Tenho presentes para vocês! Aqui fora há carruagens cheias de cores e maravilhosas como vocês sempre sonharam! Há carrinhos puxados por bois, por cabras e por cervos! Saiam da casa e venham brincar com eles!
Ao ouvir aquilo, as crianças correm para fora e ao chegar perguntam ao pai onde estavam os três tipos de carruagens que ele dissera. O pai então dá a todos os seus filhos carruagens belas, reluzentes, velozes, enfeitadas e cheias de cores, porém, todas igualmente puxadas por bois brancos.

A casa é o mundo fenomênico. Seus habitantes são os seres à cata de satisfações passageiras. Quando forçados a encarar a impermanência de tudo aquilo (o fogo consumindo a casa) sofrem e se desesperam ao perceber que nada pode - nem vai - durar. O homem opulento é o Buda. Ele lança um aviso, mas perdidos em nossa ignorância não ouvimos ou nem mesmo entendemos. Então ele ensinou diversas maneiras de se deixar a casa. Para quem desejava ouvir o ensinamento da boca de um mestre, ensinou o caminho do sravaka (os que desejavam o carro de cervos), a disciplina para se atingir as Quatro Nobres Verdades, etc. Para os praticantes solitários, que através do autocontrole e serenidade chegariam à mesma compreensão, ensinou o veículo dos pratyekabuddhas (quem desejava o carro de cabras) e aqueles que buscaram o conhecimento próprio dos budas, com o objetivo de alcançar a todos os seres e beneficiar a todos (o carro de bois), esses assumiram a postura do Grande Veículo e são chamados de Bodhisattvas Mahasattvas. E no fim, o objetivo do caminho dos Sravakas e dos Pratyekabuddhas era atingir o estágio do Bodhisattva (por isso receberam o carro de bois ao sair da casa). Como fica bem claro nesse trecho do mesmo capítulo:
"... o Tathagata, ó Shariputra (...), é capaz de ensinar a todos os seres uma doutrina que comporta o conhecimento próprio do Onisciente. Desta maneira, ó Shariputra, que se saiba que é assim que o Tathagata ensina apenas um Único Grande Veículo com as realizações de sua Habilidade nos Métodos e de seu Conhecimento."
E no capítulo V:
"Eu, o Rei da Doutrina (...) prego a Doutrina conhecendo suas inclinações. Os Grandes Heróis de firme inteligência, por longo tempo ocultam sua mensagem, eles a mantém secreta e não a dizem aos seres. E os ignorantes, de escassa inteligência, ao ouvir subitamente aquele Conhecimento difícil de compreender, seriam presa da dúvida; privados dele, eles vagariam confundidos. Eu falo a cada um segundo sua capacidade, conforme sua força; retifico suas opiniões com variadas razões.
(...)
"E aquela água de um único sabor pela nuvem liberada, e estagnada aqui na terra, segundo sua força, conforme sua capacidade, as gramíneas e os arbustos a bebem.
(...)
Elas, segundo sua força, seja qual for a sua capacidade, sua semente, dão cada uma seu próprio broto, mas a água liberada pela nuvem tem um único sabor."
E no importantíssimo capítulo XIII, sobre a conduta do Bodhisattva:
"... quando prega o Dharma, o faz sem que falte nada, sem que sobre nada, com amor igual por todo o Dharma; nem sequer por amor ao Dharma favorece mais qualquer parte dele, quando está dando a conhecer esta Exposição da Doutrina."
Ou seja, o Bodhisattva analisa o ensino enquanto totalidade, compreende o Dharma como uma unidade, não escolhe de acordo com a própria conveniência um sutra específico ou pior, ainda dentro deste o segmenta dizendo que apenas determinados capítulos importam e os demais devem ser descartados.

Sendo assim, fica claro que todo e qualquer ensinamento legitimamente budista, é válido e conduz ao mesmo lugar, o assento da libertação do ciclo de renascimentos e consequentemente ao fim do sofrimento, medo e angústia, um processo mental, interno e para ser vivido nesta única vida presente. Portanto, se alguém disser que o sutra da luz roxa com bolinha amarela ou o mestre juquinha do himalaia são os verdadeiros e todos os outros estão errados, aprenda a lidar com isso, essa pessoa está mentindo. E mais, se outro disser ainda que todos os ensinos, sem distinção, sem análise, sem questionar, estão corretos, além de mentiroso, tal pessoa é hipócrita, pois tal comportamento não passa de autopreservação sob a máscara de falsa bondade. "Não ataco para que não me ataquem, pois não terei argumentos para defender minha posição."

Mas como reconhecer o caminho?

Se existem ensinamentos legítimos, existem também falsos, correto? Correto. Então, qual seria o critério? Análise e reflexão num processo pessoal. Não é através do que fulano disse, mesmo que ele seja "uma pessoa respeitada que todo mundo conhece", nem só por constar num texto velho. Nada no Budismo é pautado em fé ou crença inquestionável. Desde os primeiros textos é feito um convite à dúvida, como consta na clássica passagem do Sutra aos Kalamas onde é atribuída ao Buda a afirmação:
“Agora Kalamas, não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’ Quando vocês souberem por vocês mesmos que, ‘Essas qualidades são hábeis; essas qualidades são isentas de culpa; essas qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao bem-estar e à felicidade' - então vocês devem penetrar e permanecer nelas."
Ou seja, somente depois de analisar bastante, de acordo com a inferência lógica e conclusões sólidas, se você perceber que existe algo ali que seja mensurável e que necessariamente leve a um ponto superior, melhor, um objetivo concreto e favorável, faça.

Quais seriam os pontos a se considerar nessa avaliação?

Existe algo que é chamado de Dharmamudra, ou Selos do Dharma. São chamados de selos, pois são características usadas para distinguir um ensinamento budista verdadeiro de um falso. Eles são:
  1. A impermanência. Ou seja, todas as coisas que surgem, inevitavelmente desaparecerão, se dissolverão.
  2. O sofrimento. A impossibilidade de se adquirir satisfação através de tais coisas manifestas, já que impermanentes.
  3. A insubstancialidade. Todas as coisas são desprovidas de ego imutável, essência real ou alma.

Fora dessas três características não é ensinamento budista. T'ien-t'ai ainda considera os três selos como uma unidade, sendo inseparáveis um do outro. Assim, além de estarem espalhados por toda a literatura budista, os Selos do Dharma também estão perfeitamente agrupados em alguns textos, dentre eles, o Ekottara Agama, o Capítulo IX do Abhidamma ou no belíssimo exemplo que segue:
"'Todas as coisas compostas são impermanentes.'
Tão logo alguém vê isto com sabedoria,
Então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.
'Todas as coisas são insatisfatórias.'
Tão logo alguém vê isto com sabedoria,
Então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.
'Todas as constituições mentais são insubstanciais.'
Tão logo alguém vê isto com sabedoria,
Então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação."
(Dhammapada c.XX Do Caminho. v.277-279)
E é através da compreensão dessas três características, desses três selos que, se entra na corrente que guia ao fim do sofrimento, angústia e medo, ao Nirvana.

. . .

Nenhum comentário:

Postar um comentário