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quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Visão Supersticiosa de Deus

Spinoza (1632-1677) escreveu Ética de 1661 a 1675. A crítica à superstição foi o fator motivador que levou o autor a produzir esta obra, onde demonstrou como Deus é a causa racional produtora e conservadora de todas as coisas (inclusive de si mesmo), segundo leis que os homens podem conhecer plenamente. Nesta visão, Deus não estaria fora do mundo nem no mundo, mas o mundo estaria em Deus, agindo como causa imanente e não transcendente. (2) (3)


Após dedicar toda a Parte I do livro para explicar a natureza de Deus, basicamente refutando qualquer relação com definições judaico-cristãs e antropomórficas¹, Spinoza tece algumas considerações no Apêndice deste capítulo sobre a necessidade de se afastar os preconceitos oriundos da falsa ideia de Deus, para um melhor entendimento da realidade. Tais considerações serão analisadas no decorrer deste texto. (1)

Segundo Spinoza, todos os preconceitos existentes são originados à partir da concepção de que haveria uma finalidade ou algum objetivo na criação.

"Ora, todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que este lhe prestasse culto."

Questionando a razão das pessoas se apegarem tão facilmente aos preconceitos, Spinoza parte do pressuposto de que os homens, por acreditarem ser livres, vivem em busca de algo que lhes seja útil e que lhes apeteça, porém, realizam esta busca sem o entendimento correto das causas responsáveis por estes desejos². Desta forma, equivocadamente pensam que as coisas são meios para sua própria utilidade, por exemplo, os dentes para mastigar, os vegetais para se comer, etc., esquecem-se, portanto, que as coisas foram apenas instrumentos encontrados para a manutenção da vida e que a utilidade não é uma característica intrínseca destas coisas. Munidos destes pensamentos, atribuem à Deus, ou a outros seres divinos, a providência dessas coisas consideradas úteis. 

"E, por nunca terem ouvido falar nada sobre a inclinação desses governantes [deuses], eles igualmente tiveram que julgá-lo com base na sua, sustentando, como consequência, que os deuses governam todas as coisas em função do uso humano, para que os homens lhes fiquem subjugados e lhes prestem a máxima reverência."

Deste modo, visando se destacar no plano divino, o homem desenvolveu vários métodos de culto para que a ação de Deus se movesse em favor de seus desejos e cobiças. Assim, Spinoza demonstra como a superstição foi introduzida no pensamento humano e, por conseguinte, as elucubrações intermináveis para se explicar as causas finais de todas as coisas, inclusive os porquês do problema do mal no mundo³. As catástrofes naturais, por exemplo, eram interpretadas como a cólera dos deuses diante das faltas comportamentais ou pela displicência de cultos prestados; interpretações ineficazes, pois da experiência cotidiana é constatado que o bem e o mal ocorrem indistintamente, ou seja, não em função da religiosidade da pessoa.
Mesmo em face a tantas evidências, a humanidade preferiu a ignorância, colocando o desconhecido na conta do sobrenatural, ao invés de construir um pensamento novo, que deveria, segundo Spinoza, ser fundamentado na matemática, linguagem de toda sua Ética4.

"Mas afirmo, ainda, que essa doutrina finalista inverte totalmente a natureza, pois considera como efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa".

A afirmação citada acima contrapõe o preconceito finalista, pois as causas finais estão mais afastadas da origem, ou seja, de Deus. Ora, quanto mais afastada da Perfeição (pois Deus é perfeito), menos perfeito a coisa é, por requer mais causas intermediárias5. E além disso, se Deus fizesse as coisas para um determinado fim, isso implicaria que a Ele apetece algo que lhe falta, o que seria absurdo.
Os teólogos e metafísicos partidários da doutrina finalista, embora tentassem desviar-se dos argumentos de Spinoza dizendo que Deus fez os seres para satisfazer uma necessidade alheia e não a própria, não conseguiram deixar de admitir que Deus tudo criou em função de si mesmo, pois somente Ele existia antes do ato da criação, ou seja, não dispunha daqueles seres em proveito dos quais ele supostamente poderia ter querido e desejado antes de criar, o que não deixa de se caracterizar como um finalismo.
Outra argumentação recorrente aos contrários à Spinoza era a de redução ao impossível6, como no exemplo dado no apêndice estudado:

"Com efeito, se, por exemplo, uma pedra cair de um telhado sobre a cabeça de alguém, matando-o, é da maneira seguinte que demonstrarão que a pedra caiu a fim de matar esse homem: se a pedra não caiu, por vontade de Deus, com esse fim, como se explica que tantas circunstâncias [...] possam ter se juntado por acaso? Responderás, talvez, que isso ocorreu porque ventava e o homem passava por lá. Mas eles insistirão: por que ventava naquele momento? E por que o homem passava por lá naquele exato momento? Se respondes, agora, que se levantou um vento naquele momento porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava calmo, o mar começou a se agitar, e que o homem tinha sido convidado por um amigo, eles insistirão ainda (pois as perguntas não terão fim): por que, então, o mar estava agitado? E por que o homem tinha sido convidado justamente para aquele momento? E assim por diante, não parando de perguntar pelas causas das causas até que, finalmente, recorras ao argumento da vontade de Deus, esse refúgio da ignorância".

E ainda continua:

"Assim, igualmente, quando observam a construção do corpo humano, ficam estupefatos e, por ignorarem as causas de tamanha arte, concluem que foi construído não por arte mecânica, mas por arte divina ou sobrenatural e igualmente por esta arte foi constituído, de tal forma que uma parte não prejudique a outra."

Em seguida, Spinoza advoga que é preciso compreender as coisas naturais como um sábio, em vez de deslumbrar-se como um tolo. E que a estupefação, como fruto da ignorância, é o único meio de argumentação dos religiosos antropocêntricos para manter sua autoridade perante a sociedade. (3)

Envenenado pela ilusão finalista, o homem considerou-se dominador da criação7, começando a formar noções para explicar a natureza à partir dessa visão. Desta forma, surgiram os conceitos de bem, mal, ordenação, confusão, calor, frio, beleza, feiura, etc. De maneira semelhante, por julgar-se livre, o homem construiu noções como o louvor e desaprovação, pecado e mérito.
O bem e o mal surgiram pela ideia do benefício à saúde e do culto a Deus, já a ordenação é entendida como realmente existente na natureza e não algo surgido da imaginação; ou seja, crê-se que Deus criou o mundo de maneira ordenada pela constatação de que há alguma organização na criação, mas, por outro lado, estes mesmos crédulos ignoram os infinitos fenômenos considerados confusos. A imaginação também explicaria as demais noções, pois ao acreditar que tudo foi feito em função de nós, julgamos os afetos como agradáveis ou não, atribuindo, segundo nossos sentidos, a universalidade destes valores às coisas.
As comuns controvérsias a respeito das coisas que experimentamos é uma evidência de que estes valores não estão nas coisas, sendo, porém unicamente convenções ou percepções particulares.

"Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável..."

Spinoza até cita, entre outros ditados, esse: "Cada cabeça, uma sentença". Para demonstrar que os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que, mais do que compreender, eles a imaginam8. Ora, este comportamento nada mais é do que acreditar que o nome dado pela imaginação aos entes é a própria realidade, o que para o autor, limita o verdadeiro entendimento da natureza.
Enfim, com os argumentos dados, fica fácil refutar qualquer outro preconceito que possa existir à ideia de Deus de Spinoza. Por exemplo, poderiam alguns questionar a origem das imperfeições do mundo. Porém, como foi visto, a perfeição está na própria natureza e potência das coisas e não na avaliação dada pelos homens através de seus sentidos. Ou ainda, por que Deus teria criado pessoas que deturpam a realidade e tão facilmente se afastam razão, seria respondido porque as leis da natureza são tão amplas e perfeitas que delas todas as coisas que possam ser concebidas por um intelecto infinito foram produzidas9.

Conclusão

Em linguagem matemática (mathesis universalis), o Apêndice da Parte 1 da Ética discursa sobre o preconceito, que tem sua origem na noção de que o homem seria o agente superior da natureza e que, portanto, todas as coisas teriam sido criadas para um fim que lhe apetecesse. Assim, visando dissipar esta visão finalista, Spinoza propõe a desmistificação da imagem do Deus provedor (voltado aos homens e de características humanas), demonstrando que as superstições são formas inadequadas de se interpretar a realidade, pois não levam em consideração as verdadeiras conexões e relações causais. Logo, nesta perspectiva, pessoas que supersticiosamente procuram “agradar” a Deus através de cerimônias, que explicam o bem e o mal em função da misericórdia e da cólera divina ou que julgam algo como bom, mau, bonito, feio, ordenado ou confuso simplesmente segundo seus sentidos, estariam iludidas por noções finalistas, sendo incapazes de perceber a verdadeira origem dos fenômenos ou a real potência das coisas que as circundam. Deus é concebido pelo autor como perfeito, mas não perfeito segundo o senso comum de perfeição. As coisas são perfeitas em si e não segundo qualquer juízo humano de utilidade ou ordenação.
A intenção de Spinoza ao definir um Deus isento de características antropomórficas e judaico-cristãs é propor um modelo de mundo onde os fenômenos são produtos de relações causais, geradas dinamicamente em Deus, mas que, por sua vez, não têm um fim em si próprias. Em outras palavras, não há espaço para se crer em um Deus que zela pela humanidade e que aja em favor de súplicas (o ser humano, então, deixa de ser o protagonista no mundo e passa a ser “apenas” mais uma das infinitas manifestações de um Ser imanente). Desta maneira, somos responsáveis pelo bem e o mal, pela ordenação e a confusão, pela beleza e a feiura e por qualquer outra extensão de nossa imaginação, sendo incabível atribuir qualquer um desses valores ao intelecto divino.

Notas:

1- Spinoza exclui todas as representações antropomórficas de Deus, descrevendo-o como inerte a qualquer sentimento humano, não tendo nem intelecto, nem vontade. A vontade e o intelecto não tem outra relação com Deus senão o movimento e o repouso. (4)
2- Apesar dessa definição não constar na Parte 1, é pertinente adiantar aqui, para melhor compreensão do Apêndice, a discussão presente nas primeiras proposições da Parte 2 que abrangem a relação entre o pensamento adequado e inadequado. O pensamento inadequado é aquele que é submetido às paixões (ou seja, os homens não são tão livres como supõem), enquanto o pensamento adequado, produz ações adequadas, cujas quais, são oriundas de distinções claras das relações causais. (1) 
3 - O Problema do Mal para Spinoza não é explicado como um Bem com substância e um Mal como privação. O bom e o mau são relativos e exprimem-se um em relação ao outro, e ambos em relação a um modo existente. Para o autor, considerar o Bem como uma razão de ser e agir, é cair em ilusões finalistas. (5)
4 - Método matemático não quer dizer necessariamente que se deva usar a aritmética, a álgebra ou a geometria para o conhecimento de todas as realidades, e sim que o método procura o ideal matemático, isto é, ser uma mathesis universalis (conhecimento completo, inteiramente dominado pelo intelecto, regido de ordem e medida). (2)
5 - Deduzido das proposições 21, 22 e 23 da parte 1 da Ética. (1)
6 - A ideia básica da redução ao impossível ou absurdo reside no fato de que uma proposição não pode ser verdadeira se dela deduzimos uma contradição. Ou seja, é um tipo de argumento lógico no qual alguém assume uma ou mais hipóteses e, a partir destas, deriva uma consequência absurda, e então conclui que a suposição original deve estar errada. (6)
7 - No judaísmo/cristianismo, fica evidenciada a função dominadora do homem nas Sagradas Escrituras em Genesis 1.26. (7)
8 - Estas ideias abstratas surgem, quando excedido o nosso poder de sermos afetados pelas coisas, contentamo-nos em imaginá-las ao invés de compreendê-las. (5)
9 - Demonstrado na Proposição 16 da Parte 1. Da necessidade da natureza divina devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras (isto é, tudo o que pode ser abrangido sob um intelecto divino). (1)

Referências Bibliográficas:
1. Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte : Autêntica, 2013.
2. Chauí, Marilena. Primeira Filosofia. São Paulo : Brasiliense, 1986.
3. Spinoza, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Lisboa : Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004.
4. Delbos, Victor. Espinosismo. São Paulo : Discurso Editorial, 2002.
5. Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática. São Paulo : Escuta, 2002.
6. A Prova por Redução ao Absurdo da Lógica Clássica. Medeiros, Maria da Paz Nunes de. Natal : Revista Princípios, 1995, Vol. II.
7. Centro Bíblico Católico. Bíblia Sagrada. São Paulo : Ave Maria, 1982.


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